Um sopro de vida sobre a cidade

A história da Valcareggi, fábrica e oficina de instrumentos musicais que completa 100 anos em Porto Alegre

Marcos Valcareggi, quarto representante da família à frente da empresa, na oficina da Valcareggi, cercado de peças de instrumentos musicaias

Marcos Valcareggi: quarta geração à frente da empresa centenária (Fotos/Ro Lopes)

Não são muitas as empresas que chegam aos 100 anos – ligadas à área da cultura, então, nem se fala.

É, justamente, o caso da Valcareggi, fábrica e oficina de instrumentos de sopros e percussão abrigada, desde 1925, na Rua João Alfredo (antiga Rua da Margem), no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre.

— Quando meu bisavô abriu a porta pela primeira vez, não pensou que a firma ia durar 100 anos. Mas, no outro dia, ele abriu de novo e assim sucessivamente. Hoje pela manhã, eu abri a porta e, provavelmente, amanhã vou abrir outra vez. Essa é uma história que se construiu, dia após dia, com muito trabalho — diz Marcos Valcareggi, de 57 anos, que representa a quarta geração da família à frente da empresa.

Não à toa, durante décadas, a Valcareggi foi uma referência central na cena musical da capital gaúcha.

Por lá passaram grandes instrumentistas da cidade, em diferentes épocas, para adquirir ou consertar seus instrumentos, como o flautista Plauto Cruz e o percussionista Giba Giba, para citar apenas dois nobres exemplos. Há relatos de que Lupicinio Rodrigues, assíduo frequentador do bairro boêmio, também visitava o casarão da João Alfredo, embora o único instrumento que soubesse tocar, de fato, fosse a caixinha de fósforo.

Afora isso, fanfarras e bandas marciais de vários estados brasileiros – e de países do Cone Sul – ainda hoje recorrem aos préstimos da Valcareggi, assim como escolas de samba, blocos carnavalescos e até torcidas organizadas de Grêmio e Internacional.

A empresa centenária atende, igualmente, orquestras sinfônicas, além de oferecer seus serviços para lojas de instrumentos de música.

‘Leciona-se corne’

O fundador da Valcareggi, Enrico, nos primeiros tempos da emrpesa, com os filhos, Agostinho e Noris, e Orlanda, sua segunda companheira

Enrico com os filhos, Agostinho e Noris, e Orlanda, sua segunda companheira (Acervo familiar)

Enrico Valcareggi, fundador da empresa, era de Milão, na Itália. Fazia parte de uma linhagem de luthiers, profissionais que se dedicam ao ofício de construir ou reparar instrumentos musicais (o termo em italiano é liutaio).

Ele veio para o Sul do Brasil com uma leva de imigrantes que havia sido contratada para a Banda Municipal de Porto Alegre, fundada por decreto do intendente Otávio Rocha, em 19 de maio de 1925 (leia a matéria do Rua da Margem sobre a Banda aqui).

A bem da verdade, quando recebeu o convite, Enrico atuava em Buenos Aires como músico. E, antes de fincar âncora na capital do RS, ainda arrumou tempo de dar um pulinho na Itália a fim de buscar as suas ferramentas de luthieria.

Assim, quando se estabeleceu em Porto Alegre, além de tocar trompa na Banda Municipal, pôde se dedicar à tarefa de consertar os instrumentos dos colegas. Essa é, aliás, a origem da Valcareggi.

Folheto de divulgação da Valcareggi no começo da empresa

Folheto de divulgação dos primeiros tempos da Valcareggi (Acervo familiar)

Enrico também dava aulas particulares em casa, tanto que pôs uma placa na fachada do prédio em que morava: “Leciona-se corne”.

Mas, com a gozação dos colegas brasileiros, por conta da semelhança de “corne” com “corno” em português, achou de bom tom trocar para “Leciona-se sopros”.

Difícil era aplacar a saudade da terra natal, amenizada, em parte, pelas garrafas de vinho chianti, que amigos e parentes traziam da Itália.

— Bebia chorando, como se sentisse o cheiro da terra dele — conta Marcos.

A Valcareggi foi aberta no nº 554 da Rua João Alfredo, nas proximidades do antigo Solar de Lopo Gonçalves, onde hoje está o Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo

A família fixou residência no nº 537, na calçada oposta, quase na esquina com a Rua Luiz Afonso. Em 1959, mudou-se para o casarão do nº 689 da João Alfredo, mais tarde adaptado para alojar a oficina – aliás, ela funciona ali até hoje.

No começo, era só uma oficina de conserto. Em seguida, Enrico passou a importar peças da Itália para fabricar instrumentos musicais, além de agregar as atividades de prateação, niquelagem e cromagem. Tempos depois, deu início à produção de instrumentos de percussão.

Trapiche no quintal

Marcos com Jorge Francisco da Costa, luthier que trabalhou muito tempo na Valcareggi (Acervo familiar)

A Valcareggi acompanhou as mudanças que aconteciam à sua volta na trajetória centenária. Por sinal, essa trajetória quase se entrelaçou com a história do Brasil!

Numa feira industrial que acontecia na antiga Várzea (atual Parque da Redenção), Enrico se aproximou da comitiva presidencial liderada por Getúlio Vargas. Naquele momento, os sentimentos cívicos andavam à flor da pele.

É que, dias antes, havia eclodido a Revolução de 1930. Com isso, Getúlio deixara o cargo de presidente do Estado do RS (equivalente ao de governador) para assumir o posto de chefe do governo provisório da República.

No alvoroço da feira, Enrico ofereceu um clarim de presente. Agradecido, Getúlio pediu que o regalo fosse despachado de avião para o Rio de Janeiro, com a intermediação do governo estadual.

Assim foi feito, mas nada saiu como planejado.

A encomenda teria sido entregue, em mãos, ao sr. Annibal Loureiro, passageiro do avião Potyguar, para que tomasse conta dela até a aterrisagem na antiga capital federal.

No trajeto, porém, a aeronave despencou do céu e afundou no Oceano Atlântico. O episódio foi relatado em carta do secretário da Presidência do RS, João Antunes da Cunha, para Enrico, com data de 26 de novembro de 1930.

Carta de representante do governo gaúcho explicando que clarim dado de presente ao presidente Getúlio Vargas estava em avião que caiu no mar

Carta com relato do acidente com o clarim, em 1930

Em nível local, a Valcareggi testemunhou alterações radicais na geografia de Porto Alegre.

Até meados do século passado, o Arroio Dilúvio passava junto ao pátio das casinhas do lado ímpar da Rua João Alfredo, tomando o rumo da Ponte de Pedra, onde desaguava no Guaíba.

Nos fundos do casarão dos Valcareggi, havia um trapiche.

Nele, barqueiros atracavam para abastecer a família com carvão, leite, ovos e legumes. Parte dos mantimentos vinha de uma propriedade de Enrico à beira do Rio Jacuí, na Ilha da Pintada.

Quando Enrico morreu, aos 63 anos de idade, em 1946, os filhos – Agostinho e Franco – mudaram o nome da empresa para Irmãos Valcareggi.  Anos mais tarde, o neto do fundador – Henrique, que faleceu há cerca de 15 anos – assumiu as rédeas da firma e rebatizou-a como Valcareggi Indústria e Comércio.

Atualmente, Marcos (filho de Henrique), de 57 anos, é quem comanda a empresa. Com um breve intervalo, em sua juventude, quando tentou vender persianas e material de escritório, ele trabalhou a vida toda na Valcareggi.

— Mesmo porque não sei fazer outra coisa direito, nem esquentar pipoca para vender na Redenção. Não fiquei rico, mas sou feliz — afirma.

Marcos começou a labutar aos 14 anos, quando morava no Menino Deus e estudava no Colégio Pão dos Pobres. Certo dia, vindo da aula de Educação Física, ele propôs ao avô:

— Deixa eu trabalhar contigo!

A princípio, Agostinho torceu o nariz.

— Vai fazer o quê?

— Vou consertar instrumentos! — respondeu o moleque, cheio de si.

Nisso, o tio-avô Franco intercedeu:

— Deixa o menino conosco. Sempre tem coisa pra fazer, nem que seja varrer o chão. Além do mais, não precisa se preocupar: amanhã ele já vai ter desistido do novo trabalho. Capaz de nem aparecer mais.

Empolgado, Marcos se preparou para dar um pique em direção à oficina, mas o avô enganchou os dedos na alça da camiseta regata do guri magricela (o apelido era Fiapo) e o puxou de volta.

— Nada disso. Começa limpando a graxa do polimento.

‘Bata com força’

Fachada do prédio da Valcareggi com vista do céu azul

Passada a fase de adaptação, Marcos trabalhou durante muitos anos na oficina “com a barriga na mesa” – ele de um lado, o avô de outro.

Mais do que a técnica do ofício, aprendeu com Agostinho a ser exigente, meticuloso, perfeccionista – de resto, atributos indispensáveis a um luthier.

A fábrica de instrumentos de sopros prosseguiu até a década de 1970, quando priorizou a produção de peças de percussão. No final do século passado, retornou, de vez, às origens, restringindo-se à oficina de manutenção e conserto, com exceção dos serviços de prateação e cromagem, que também se mantiveram ativos.

Como todos os gaúchos, a Valcareggi sofreu um baque no outono do ano passado.

Era início da tarde do dia 6 de maio de 2024. Marcos trabalhava no andar de cima, quando escutou batidas vindas dos fundos da casa, junto à Travessa Pesqueiro.

— Que estranho! Parece que tem gente no pátio — pensou.

Ao espiar pela janela, o cenário era de arrepiar: em alta velocidade e girando como se fosse piorra, a água do Guaíba emergia do ralo pluvial. 

— Levantei do chão o que pude, mas não deu tempo pra salvar grande coisa lá embaixo.

No auge da enchente, a água atingiu a altura da cintura de uma pessoa adulta. Desde então, as atividades de banho de prata da Valcareggi, que se davam no subsolo, estão suspensas.

Já os serviços de luthieria continuam ativos no andar de cima, embora não haja mais recepcionista no hall de entrada do prédio, também danificado pela inundação. Isso não chega a ser um obstáculo: os clientes chamam pelo WhatsApp ou atendem ao aviso colado na porta de ferro: “Bata com força”.

Abaixo, detalhes da oficina dos Valcareggi (Imagens: Ro Lopes).

— A empresa está muito viva! — proclama Marcos.

Ele se desloca pela oficina para apanhar uma frieira, ferramenta de ferro usada no conserto dos instrumentos.

— Isso aqui na minha mão é ouro. Com essa ferramenta, eduquei meus filhos, comprei uma casa e ainda ajudei a produzir cultura nessa cidade. No dia em que ela não for mais usada, vai virar ferro derretido para produzir aço. Talvez se transforme num míssil americano — ironiza.

Desde que se tornou um dos 24 luthiers brasileiros chamados pela Yamaha para realizar cursos de atualização, há cinco anos, em São Paulo, Marcos agregou a tradição familiar às metodologias contemporâneas da luthieria – em breve, participará da oitava edição do treinamento.

— Os métodos atuais não brigam com o conhecimento antigo. Pelo contrário, eles se complementam. Gostaria de ressuscitar meu avô para mostrar essas novidades para ele.

Marcos conta que Agostinho não era tabagista, mas tinha o hábito de acender um cigarro para jogar fumaça dentro do saxofone e, assim, encontrar o ponto exato por onde o som vazava. Nos dias atuais, não precisaria fazer isso. A tecnologia dispõe de recursos como lâmpadas LED, que funcionam como se fossem os “olhos” do luthier.

Celebração no museu

Passado e presente estarão juntos no evento Centenário Valcareggi – 100 anos prestando serviços de luthieria à comunidade musical de Porto Alegre, dia 13/12, das 11 horas da manhã às 8 da noite, no pátio do Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo.

Já confirmaram presença atrações musicais como Orquestra Jovem do RS, Banda Comunitária da UFCSPA, Banda Marcial Juliana, Orquestra Comunitária de Safoxones do RS. Cuidado Que Já Nos Viram e Projeto Cavaquineos, além do saxofonista King Jim.

Haverá ainda barracas de alimentação e bebidas e também de expositores de economia criativa com moda, artesanato e produtos naturais, além de uma mostra fotográfica sobre a evolução da Valcareggi ao longo do tempo.

Quanto ao futuro, é difícil prever o que vai acontecer. O casarão da João Alfredo encontra-se em processo de inventário, mas a Justiça autorizou que fosse colocado à venda, cujo valor deverá ser repartido entre cinco herdeiros.

O representante da quarta geração da Valcareggi sonha em transformá-lo numa fundação cultural, que acolha – além de ensaios e concertos musicais – uma escola de luthieria. Desse modo, ele poderia transmitir o conhecimento que adquiriu ao longo de mais de 40 anos.

Nesta fundação, é claro, não faltaria espaço para alojar um memorial que contasse a história inteirinha da empresa fundada pelo bisavô há 100 anos.

— É a minha utopia — conclui.