Por que uma das escolas mais tradicionais do Estado está com tantas salas de aula vazias?
Colégio padrão no século 20, Júlio de Castilhos chegou a ter 5 mil alunos e hoje conta com menos de 1 mil estudantes
Além de poucos alunos, escola centenária convive com falta de pessoal de apoio e precariedade de infraestrutura (Fotos/Ro Lopes)
Durante muitas décadas, o Colégio Estadual Júlio de Castilhos foi apontado como referência de qualidade na educação do Rio Grande do Sul.
Não por acaso, o Julinho – como é carinhosamente chamado pelos porto-alegrenses – era considerado o “colégio padrão” do Estado. O título servia de reconhecimento não só à excelência do ensino, mas também ao ambiente político e cultural participativo, que fez da escola um símbolo da luta pela liberdade e por direitos sociais e ambientais.
Não é exagero afirmar que, ao longo do século 20, o Júlio de Castilhos – fundado em 23 de março de 1900 – formou algumas das mais expressivas lideranças políticas gaúchas, entre elas, figuras como Leonel Brizola (que fez parte da primeira diretoria do grêmio estudantil, em 1943), Paulo Brossard, Ibsen Pinheiro, Antonio Britto e Luciana Genro.
Sem falar de jovens que arriscaram a vida para defender a democracia, como Luiz Eurico Lisbôa, o Ico (irmão do cantor e compositor Nei Lisboa), assassinado pelo regime militar, em 1972. Como homenagem, o auditório do colégio leva o nome do ex-aluno.
Escadaria reproduz valores da escola
Pelas classes do Julinho, passaram ainda artistas, intelectuais e jornalistas consagrados.
A lista inclui desde Dante de Laytano e Joaquim José Felizardo até João Gilberto Noll e Moacyr Scliar (que dá nome à biblioteca da escola). Abrange ainda Walmor Chagas, Tatata Pimentel, Caco Barcelos, Antonio Hohlfeldt, Paulo Sant’Ana, Ivette Brandalise e Ruy Carlos Ostermann.
Como se fosse pouco, o Julinho foi precursor de movimentos pioneiros e inovadores.
A escola abrigou, por exemplo, o grupo ecológico Kaa-Etée (mata virgem, na língua dos guaranis), em 1979, época em que a causa ambiental ainda arregimentava poucos adeptos no Brasil.
Bem antes, em 1947, sob a liderança de Paixão Côrtes, os julianos haviam fundado um departamento de defesa das tradições gaúchas. A mobilização dos jovens estudantes resultou na criação da Semana Farroupilha, até hoje uma das principais datas do calendário do RS.
Esse cenário efervescente e criativo era bastante atraente. Tanto que, na década de 1970, o colégio contava com cerca de 5 mil alunos. Mas esse tempo ficou para trás. Hoje, menos de 1 mil (984, mais precisamente) frequentam a instituição.
Afinal, por que uma das escolas mais tradicionais do Estado, atualmente, acumula tantas salas de aula vazias?
Essa pergunta não tem uma só resposta.
— Como acontece com todo o ensino médio, sofremos com a evasão escolar. Um dos motivos é o custo das passagens de ônibus — diz a diretora Paola Ribeiro.
De fato, as salas ficaram mais vazias desde que, em novembro de 2021, as regras para a concessão da meia-passagem para estudantes foram alteradas em Porto Alegre. De lá para cá, apenas alunos com um recorte bastante baixo de renda têm direito ao benefício, pontua a diretora.
Carioca que passou boa parte da infância em São Paulo, Paola se radicou no Sul na década de 1990, época em que estudou no Julinho. Ela é professora da escola desde 2015, tendo assumido o cargo de diretora no início deste ano.
Direito de cidadania
A relação de proximidade de Paola com o Júlio de Castilhos não acaba aí.
Em 2022, na dissertação de mestrado para o Ensino de História da UFRGS, ela propôs a adoção da história juliana como ferramenta pedagógica para o aprendizado do período da ditadura militar, que durou de 1964 a 1985 (por sinal, a reportagem do Rua da Margem sobre o colégio, publicada em 2018, é uma das referências utilizadas na construção do texto acadêmico).
Paola na sacada do Julinho, em frente à Praça Piratini
Além do custo do transporte, o declínio da qualidade de ensino também explica a redução do número de alunos nas últimas décadas.
Curiosamente, no primeiro momento, o apelido “colégio padrão” não foi dado ao Julinho por conta da excelência do ensino.
— No início dos anos 1940, alguns colégios receberam a missão de formular os padrões pedagógicos e curriculares que deveriam ser seguidos em toda a rede estadual. O Julinho estava entre eles e foi o único que manteve a fama de “colégio padrão” nas décadas seguintes. O nome pegou mesmo — relata Neiva Schäffer, coordenadora do departamento de Comunicação Social da Fundação de Apoio ao Colégio Júlio de Castilhos (formada por 883 integrantes, entre ex-alunos e ex-funcionários, incluindo ex-professores).
Seja como for, até outro dia, ninguém duvidava da qualidade da educação ofertada pelo Julinho.
Mesmo porque, para estudar no Júlio de Castilhos, era preciso realizar o exame de admissão. De outra parte, havia concursos para a contratação de docentes. Além de prova escrita, os professores tinham que dar uma aula demonstrativa, sendo avaliados por uma banca. Esses dois fatores mantinham a régua sempre elevada.
Outro motivo para o declínio é a falta de estímulos para quem deseja seguir a carreira de professor.
— Quando eu deixei de dar aulas no Julinho, recebia o equivalente a 15 salários-mínimos, em valores da época. Hoje, com as exigências do custo de vida, a situação financeira do magistério é desesperadora — afirma Neiva, professora de Geografia aposentada, que lecionou no Júlio de Castilhos de 1969 a 1986.
Paradoxalmente, a busca pela universalização do ensino no país também ajudou a afastar os estudantes da escola centenária da região central de Porto Alegre.
Assegurar o acesso à educação era mesmo uma necessidade urgente para o Brasil, quando foi promulgada a Constituição de 1988. Antes, frequentar os bancos escolares constituía privilégio de famílias abonadas ou de classe média. Alunos pobres estavam, em sua maioria, fora da escola.
— Como não existia a obrigatoriedade de se colocar os filhos no colégio, as famílias de baixa renda entendiam que era melhor que eles trabalhassem desde cedo, até para ajudar o sustento da casa — argumenta Neiva.
Se a universalização foi benvinda, a ampliação da oferta veio acompanhada de uma notória precarização do ensino público, o que fez com que as elites migrassem para a rede privada.
A universalização do ensino também incentivou a multiplicação e o fortalecimento das escolas situadas nas periferias das grandes cidades. A intenção era a de que crianças, jovens e adolescentes pudessem estudar em locais próximos de suas casas, o que, mais uma vez, não está errado.
Só que, conforme a diretora do Julinho, é preciso assegurar também aos alunos das áreas periféricas o direito de frequentar uma escola central, caso essa seja a sua vontade.
— Há uma ideia predominante de que o aluno pobre fique restrito à sua comunidade. Na contramão disso, a gente sugere que acesse a área central para que possa perceber a cidade como um território que também pertence a ele. Antes de tudo, é uma questão de cidadania — afirma Paola.
Tapumes interditam terceiro andar em obras
Há outra razões que contribuem para o esvaziamento das salas de aula. Uma delas é a alteração da taxa demográfica.
— Há 40 anos, a quantidade de jovens e adolescentes que circulavam por essa região era bem maior, porque as famílias tinham três ou quatro filhos. Hoje, se olharmos o entorno do Julinho, veremos casais com poucos filhos em idade escolar e também muitas pessoas que moram sozinhas, boa parte delas idosas. Não é de admirar que as escolas estejam com poucos alunos — diz Neiva.
O resultado disso tudo é que, pela manhã, dois andares do Bloco A do Júlio de Castilhos estão tomados de alunos, mas, à tarde, apenas um piso é ocupado. No turno da noite, a sensação de vazio é ainda maior, já que somente três turmas do ensino médio permanecem em atividade.
Por conta da subocupação, no Bloco B (onde estão instalados laboratórios e espaços pedagógicos, além da Banda Marcial Juliana), salas foram cedidas para o EJATEC (modalidade de Educação de Jovens e Adultos voltada para formação técnica e profissional) e o NEEJA (Núcleo Estadual de Educação de Jovens e Adultos). À noite, também funciona ali o Cursinho Popular Afirmação, que prepara alunos carentes para o vestibular.
Há alguns meses, o terceiro andar do prédio principal está isolado do restante da escola em função de uma reforma anunciada pelo governo do Estado em fevereiro de 2025.
À época, foram divulgados investimentos de R$ 3 milhões para obras que incluíam melhorias estruturais e estéticas, além de recuperação de salas de aula, corredores, paredes, pisos, esquadrias, lajes e cobertura.
A ação previa ainda a manutenção das instalações elétricas e hidráulicas, reformas em banheiros e pintura interna e externa do prédio.
Rua da Margem buscou contato com a Secretaria de Educação (Seduc/RS) para obter informações acerca do que já foi realizado, o que falta fazer e o prazo para a conclusão das obras (além das razões para eventual atraso no cronograma), mas não recebeu nenhuma resposta.
Bedéis do século 19
A lentidão do andamento das obras atrapalha, mas o gargalo maior é a falta de pessoal de apoio.
Para se ter ideia, apenas quatro funcionários cuidam da limpeza do colégio, que ocupa um quarteirão inteiro do bairro Santana (o terreno é de 25 mil m², com 15 mil m² de área construída). Se a área física recebe poucos cuidados, a mente e o espírito dos jovens e adolescentes estão ainda mais à deriva. Apenas uma orientadora educacional tenta dar conta de quase 1 mil alunos, o que é – evidentemente – impossível.
— Afora isso, não temos aqui a aplicabilidade da lei que obriga as escolas a contarem com pelo menos um psicólogo. Também não temos assistente social, embora seja preciso lidar, cada vez mais, com demandas dessas áreas — pondera Paola.
No dia em que o Rua da Margem visitou o Julinho, havia acontecido uma briga entre duas estudantes do turno da manhã. Enquanto a única funcionária do Serviço de Orientação Educacional (SOE) atendia a uma delas, a outra aluna foi conduzida até a sua casa pelas mãos da própria diretora da escola.
— Ela estava muito nervosa. Eu achei melhor acompanhá-la até em casa — explicou.
A precariedade do atendimento aos estudantes, que obriga integrantes da direção a acumularem funções fora de suas atribuições, se estende por toda a estrutura da escola.
Leões e busto de Júlio de Castilhos, salvos de incêndio que destruiu a primeira sede, estão postados no hall de entrada do prédio atual do Julinho
Não há, por exemplo, monitores para observar o movimento dos alunos nos corredores. Nos bons tempos, cada andar contava com um funcionário para exercer essa função. Afora isso, o chefe de disciplina, o Capitão (a designação não era referente à patente militar, e sim ao sobrenome do servidor), circulava por todo o prédio.
Isso pode até parecer inimaginável nos dias de hoje, mas o Júlio de Castilhos já contou com os serviços de eletricista e marceneiro, que se dedicavam exclusivamente à escola. Ambos eram funcionários concursados do Estado.
Atualmente, à medida que o servidor se aposenta, não há reposição. A secretária da direção, por exemplo, se afastou devido à aposentadoria em outubro do ano passado. Até agora, não foi indicada outra pessoa para substitui-la.
Igualmente, ninguém ficou no lugar do funcionário que cuidava do arquivo no qual está guardado o conjunto de históricos escolares de ex-julianos. O funcionário está morando na praia, mas, vez por outra, de boa vontade e porque ama o trabalho ao qual se dedicou durante décadas, não se importa de vir até a escola para fazer algum serviço como voluntário.
Conforme Neiva, o arquivo está sob risco de infiltração de umidade e outras condições insalubres. Parte da documentação foi microfilmada, mas ainda existe grande quantidade de documentos em papel acomodados nas estantes (no momento, a área está coberto por tapumes devido às obras de reforma).
— A diretora anterior retirou o histórico escolar de Leonel Brizola e deixou-o na área da administração para que não sofresse danos — conta Neiva.
Por sua vez, a sala de robótica continua em atividade graças à ação voluntária de ex-alunos. Já os laboratórios de Química, Física e Biologia não tiveram a mesma sorte. Eles estão, simplesmente, com as portas fechadas por falta de pessoal.
— Não tem estagiário para abrir as salas e preparar os materiais, além de acompanhar os professores durante as atividades. É como se faltassem os bedéis do século 19 — complementa ela.
largas sacadas para a praça
Primeira sede do Julinho, na Avenida João Pessoa, de 1911, foi destruída por um incêndio em 1951 (Foto Virgílio Caligari/Acervo Museu Joaquim Felizardo)
Até o ano passado, o ambiente de salas e corredores desertos despertava em muita gente o temor de que, em algum momento, pela localização central e a dimensão do terreno, a área do Júlio de Castilhos pudesse ser repassada à especulação imobiliária. Até ordem em contrário, essa possibilidade não mais existe.
Por sugestão do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB/RS), a escola foi tombada como patrimônio histórico.
O tombamento definitivo foi publicado nas páginas 51 e 52 do Diário Oficial de Porto Alegre, em 13 de março de 2024. No ato, está explicitamente determinado que “o bem tombado deverá ser conservado e, em nenhuma hipótese, poderá ser demolido, destruído ou mutilado em parte ou em seu todo”.
A edificação foi inaugurada em 28 de junho de 1958, sete anos depois que a primeira sede do Julinho – um imponente palácio em estilo renascentista alemão, do começo do século passado – tinha sido destruída por um incêndio (nesse meio tempo, a escola funcionou, de modo provisório, no Arquivo Público Estadual).
Para a construção da nova sede, foi realizado concurso público, vencido pelo casal de arquitetos Demétrio e Enilda Ribeiro. Eles projetaram o prédio a partir do conceito de integração à paisagem externa, o que se explicita pelas paredes envidraçadas dos corredores, que se abrem para largas sacadas defronte à Praça Piratini.
Segundo Demétrio Ribeiro, essa abertura para o cenário exterior não era casual. Ela tinha o objetivo de impedir que os alunos “parassem no tempo e cristalizassem suas opiniões, pois o mundo estaria na porta da sala de aula, exigindo mudanças”.
Por essas e outras, é inadmissível que a escola centenária, “ligada à memória da população como um dos colégios mais emblemáticos de manifestação e luta estudantil” (conforme o texto da notificação de tombamento), esteja abandonada à sua própria sorte, sem amparo e proteção. É um sinal de descaso dos gaúchos com a sua própria história.