Heróis da resistência

Para não agravar pandemia, bares e cafeterias de Porto Alegre decidem continuar de portas fechadas, apesar do decreto da prefeitura que libera retorno parcial às atividades

Sem pressa para reabrir o Agulha, Eduardo Titton projeta seguir modelo de bares de Hong Kong, que monitoram sintomas da covid-19 entre os clientes (Foto/Tânia Meinerz)

Sem pressa para reabrir o Agulha, Eduardo Titton projeta seguir modelo de bares de Hong Kong, que monitoram sintomas da covid-19 entre os clientes (Foto/Tânia Meinerz)

Não foi uma coincidência feliz.

Na terça-feira, dia 19/5, data de publicação do decreto da prefeitura de Porto Alegre que liberou a reabertura de bares e restaurantes, com restrições de distanciamento social por causa da covid-19, o Brasil ultrapassou pela primeira vez a marca de mil mortos no período de 24 horas por causa da pandemia.

Ainda que a Capital do RS apresente indicadores de um controle mais efetivo do avanço do novo coronavírus, em comparação com outras cidades brasileiras, principalmente das regiões Norte, Nordeste e Sudeste, uma parcela considerável de bares se recusou a voltar às atividades, apesar das dificuldades financeiras decorrentes do período de dois meses de quarentena.

Na lista dos que adotaram essa atitude, impressiona não apenas a quantidade, mas principalmente a representatividade dos estabelecimentos na cena noturna porto-alegrense.

— Vamos esperar para ver como essa abertura vai se refletir do ponto de vista epidemiológico. No momento, prudência é uma boa medida, até porque ainda não há clima para a boemia — diz Pepe Martini, que dirige o bar Guernica, junto com o pai, Roni, na Travessa dos Venezianos, na Cidade Baixa.

A poucos passos do Guernica, a dona do Travessa Café, Darquilene Magalhães, também não faz planos de receber os clientes:

— Mesmo com a situação financeira delicada, decidimos aguardar a evolução da pandemia. Esperamos, ansiosos, o momento seguro de abrir as portas com um café e abraços quentinhos — escreveu Darquilene nas redes sociais.

Na mesma sintonia, o Justo, bar/restaurante localizado nas escadarias do viaduto da Borges de Medeiros, informou que ainda não chegou a hora de retomar as atividades:

— Diversas cidades ao redor do mundo, que fizeram esse tipo de afrouxamento tão cedo, tiveram um aumento considerável (de casos da covid-19) poucas semanas depois — justificaram os proprietários, também em comunicado nas mídias sociais.

Compasso de espera

Outro bar que prosseguirá em compasso de espera é o Parangolé, referência de música ao vivo na Cidade Baixa.

— Apesar da situação relativamente tranquila em Porto Alegre, temos que pensar no restante do País, que mostra um quadro assustador — afirma Cláudio Soares de Freitas, o seu Cláudio, dono do Parangolé.

No dia da publicação do decreto, ele fez uma reunião online com a esposa Marta e os filhos (a jornalista Ana Laura e o violonista Thiago). A família decidiu por unanimidade não abrir o bar, entre outros motivos, para proteger Cláudio, que, apesar da saúde de ferro, aos 66 anos faz parte do grupo de risco da covid-19 por conta da idade.

— É verdade que não apresento doenças pré-existentes, mas até gente jovem tem morrido. De minha parte, não estou disposto a brincar com o vírus — pondera Cláudio.

Além disso, o perfil de frequentadores do Parangolé reforça a tendência de preservação da saúde. É um público que, embora aprecie a convivência descontraída da boemia, não vai se expor em meio à pandemia, afiança Cláudio.

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“Abrir de maneira precipitada, quando a epidemia ainda está em alta, não ia soar bem perante o público. Temos uma relação de confiança com os amigos que frequentam o bar, construída ao longo de 14 anos, que não pode ser posta em risco”

Seu Cláudio, do Parangolé

Da mesma forma, o Agulha, bar que transformou um galpão abandonado do Quarto Distrito no principal palco da música popular contemporânea em Porto Alegre, prossegue de portas fechadas.

Eduardo Titton, um dos idealizadores do projeto, planeja a futura reabertura do galpão em dois momentos distintos – num horizonte mais próximo, como bar e restaurante e, bem mais adiante, quando a pandemia arrefecer, como casa de shows.

Neste último caso, será montada uma estrutura para concertos com limitação de público presencial – entre 30 e 50 pessoas –, e transmissão simultânea pela internet para plateias mais abrangentes.

Embora faça questão de dizer que não julga a atitude dos empresários que reabriram seus negócios, o dono do Agulha considera inoportuna a volta das atividades neste momento, levando em conta até mesmo as peculiaridades da vida noturna.

— Depois de dois ou três drinques, é difícil controlar o cumprimento das regras de higiene e distanciamento por parte dos clientes. Aliás, a essência dos bares noturnos é a interação social e transformá-la numa coisa asséptica é algo desafiador.

responsabilidade compartilhada

Mas engana-se quem acha que o Agulha vai fugir do desafio, quando pressentir condições favoráveis para retomar as operações. Para isso, projeta espelhar-se em modelos asiáticos, já calejados com a experiência de epidemias anteriores.

Como exemplo, Eduardo cita os bares de Hong Kong, que se dão ao trabalho de cadastrar a totalidade dos clientes atendidos a cada dia. Caso algum deles apresente sintomas da covid-19, fica combinado que avisará o bar para que sejam alertados todos os demais que estiveram no local naquela data. Para que o modelo funcione, é preciso que haja uma responsabilidade compartilhada entre frequentadores e donos dos empreendimentos, o que parece ser algo ainda a ser conquistado na cena noturna de Porto Alegre, admite Eduardo.

Outra razão para que o Agulha permaneça fechado é o respeito à reação do público.

— Tenho observado uma quantidade apreciável de críticas à abertura precipitada dos bares. Sob esse ponto de vista, abrir agora é queimar o filme da marca — analisa ele.

Por fim, existe a questão financeira. Além da limitação de 50% da capacidade determinada pelo decreto da prefeitura, o público está bastante arredio com receio do contágio da covid-19. Se pouca gente aparecer, talvez não seja vantajoso abrir o bar.

— Com a estrutura do Agulha, atender dez pessoas por noite não dá nem para pagar a conta de luz — exemplifica Eduardo.

Menos mal que, durante um bom tempo, parte do faturamento do Agulha foi destinada a uma “reserva de emergência”, capaz de sustentar o negócio durante três ou quatro meses, ainda que de portas fechadas. Graças a esse fundo emergencial, o bar está conseguindo sobreviver à quarentena sem a demissão de nenhum funcionário.

— Imaginávamos que um temporal poderia destelhar o prédio ou algum motivo desconhecido determinasse a interdição do bar. Jamais pensamos que usaríamos a reserva por causa de uma pandemia – anota Eduardo.

Outra parcela de estabelecimentos optou por continuar operando com sistema de tele-entrega ou pague e leve (quando o cliente vai até o local só para retirar a compra), caso do I Love CB, pequeno bar cult da Cidade Baixa. Antes da epidemia era comum que o público transbordasse para fora do bar, lotando a calçada da Rua da República.

Para manter o I Love CB funcionando durante a quarentena, a proprietária Letícia Silveira decidiu levantar a cortina de ferro duas vezes por semana (sextas e domingos), entre 4 e 20 da tarde e 8 horas da noite, tempo para que os clientes peguem um chope ou cerveja artesanais e, após uma rápida troca de ideias, voltem para casa. Mesmo com o decreto de liberação da prefeitura, o procedimento não será alterado.

— Não quero gerar oportunidades de aglomeração. A gente está vendo a situação de outros estados, que já adotaram ou poderão praticar o lockdown, e de outros países, que viram os casos de contágio aumentarem depois da flexibilização do isolamento social. E nós, aqui no Sul, ainda nem chegamos no inverno — argumenta Letícia.

Um novo 512 em tempos de pandemia

Outros bares optaram por se reinventar para encarar o período da pandemia. O Espaço Cultural 512, por exemplo, está em fase de reformas para se adequar aos novos tempos.

Obras no 512 para redesenhar área interna

Obras no 512 para redesenhar área interna

Não é a primeira vez que o bar altera o formato de modo radical. Quando foi inaugurado, em 2007, ocupava apenas a peça da frente do número 512 da João Alfredo. Com o passar dos anos, adicionou dois imóveis vizinhos para se transformar em pub. Agora, redesenhou a área interna para ampliar a distância entre mesas e clientes. Assim, quando o pub reabrir, os frequentadores encontrarão um novo 512.

As duas plataformas de atendimento – uma delas no centro do bar e outra ao lado do palco – foram transferidas para o setor que abrigava a área de estoque e depósito no fundo do salão. Com isso, o 512 duplicou a capacidade para 400 pessoas, público a ser atingido só depois da epidemia. Até lá, com os espaços vazios necessários para distanciar os clientes, esse número deverá ficar em 150.

Guilherme Carlin, que comanda o 512 ao lado de Rafael Corte, lamenta a falta de clareza na definição dos termos do decreto da prefeitura, que não permitiu a reabertura de “pubs, casas noturnas e similares”,

— A gente acredita que se enquadra nesse segmento, só que o termo pub não consta em nenhuma categoria de alvará expedido pela prefeitura, o que provoca confusão — aponta.

Seja como for, a previsão é concluir a reforma até 10 de junho, quando, em caso de liberação da prefeitura, o pub estaria pronto para reabrir. Guilherme se mostra pessimista quanto à retomada das atividades em condições plenas antes de 2021.

— A produção de vacinas ou a descoberta de tratamento adequado exigem um tempo maior de testes, então, todo mundo vai ter que se adequar.

Bar do Tio Lú, boteco vegano na Azenha. vai encerrar as atividades por conta do impacto financeiro da pandemia

Bar do Tio Lú, boteco vegano na Azenha. vai encerrar as atividades por conta do impacto financeiro da pandemia

Alguns bares não tiveram tempo de se adaptar à nova realidade, encerrando as atividades em consequência da crise financeira trazida pela pandemia. É o caso do Cósmica Bar, inaugurado na Rua Lopo Gonçalves, na Cidade Baixa, em outubro de 2017, com cardápio e decoração baseados no zodíaco, como mostrou a matéria feita pelo Rua da Margem na época da abertura da casa.

Igualmente, a covid-19 inviabilizou o Bar do Tio Lú, simpático boteco vegano escondido na Rua Marcílio Dias, no bairro Azenha, bem distante das regiões de gastronomia sofisticada da Capital. O empreendimento foi tema de reportagem do Rua da Margem em julho de 2018.

— Infelizmente, a situação financeira ficou insustentável e a gente não poderá continuar fazendo o que ama: levar rango vegano simples, gostoso, de valor acessível para as pessoas, e mudar essa ideia de que comida vegana custa caro — afirmaram os proprietários numa “nota de despedida” nas mídias sociais.

O Bar do Tio Lú fechará as portas no começo de junho. Até lá, continuará atendendo nos sistemas delivery e pague e leve, com agendamento para atender os clientes para que não haja aglomeração na calçada da Rua Marcílio Dias. Até lá, o boteco planejou uma série de eventos, a exemplo da Última Noite do Pastel da Alface Subversiva, para conseguir encerrar as atividades com os compromissos financeiros em dia.

Foto/Seu Cláudio: Francisco Cadaval