Ensaios da quarentena

Relatos de porto-alegrenses que estão encarando o isolamento social em meio à pandemia da Covid-19

Bebê Baumgarten, na porta da casa na Medianeira, onde está confinada desde março, fotografada por Ana Karla Severo para o projeto CoVida em Família

Bebê Baumgarten, na porta da casa na Medianeira, onde está confinada desde março, fotografada por Ana Karla Severo para o projeto CoVida em Família

“O som aniquila a grande beleza do silêncio”. 

A frase de Charles Chaplin, gênio do cinema mudo, ressoou na quarentena de Fernanda Leite, a Fê, que completou 40 dias de confinamento na sexta, 24/4, ao lado do vira-lata Pipoca, fiel escudeiro.

Ao longo desse tempo, o momento em que esteve mais próxima de algum ente humano querido foi quando avistou, da janela do apartamento, o pai e a mãe, que abanaram ao passar de carro em frente ao prédio, no Centro Histórico de Porto Alegre. Tudo de acordo com o protocolo do isolamento social, afinal, os pais fazem parte dos grupos de risco em função da idade mais avançada.

— Me dei conta de que não toco num ser humano há mais de um mês. Outra coisa de que sinto falta é ter alguém para tomar café e comer bolinho junto comigo na cozinha — diz Fê, formada em Relações Públicas na PUC/RS, com MBA em Estratégia e Ciências do Consumo na ESPM/RJ.

No início da quarentena, apesar de se sentir um tanto aérea e dispersa, ela ainda se via compelida a ler e produzir textos para a especialização em Audiovisual e Convergência de Mídia, que está cursando na Unisinos. Uma vez que o corpo estivesse impossibilitado de circular pelo território urbano, era como se o intelecto tivesse que exercer esse movimento. É o que o sociólogo sul-coreano Byung-Chul Han, autor de Sociedade do Cansaço, chama de “excesso de positividade”, explica Fê.

Foi quando ela se deparou com a frase de Charles Chaplin. O paradoxo é que, na quarentena de Fê, o elogio do silêncio apareceu na forma de um som captado no podcast AmarElo – O Filme Invisível, do rapper Emicida.

— A frase de Chaplin citada pelo Emicida me estimulou a pensar sobre como é possível criar espaços de silêncio numa sociedade conturbada e cheia de ruídos e estímulos — especula.

Ela se voltou, então, para a tarefa de desvendar delicadezas ocultas na estante da sala como antídoto para lidar com a ansiedade frente às incertezas do futuro.

A analista cultural Fernanda Leite, a Fê, junto com o vira-lata Pipoca, companheiro de quarentena em tempos de Covid-19 (Foto/Arquivo Pessoal)

A analista cultural Fernanda Leite, a Fê, junto com o vira-lata Pipoca, companheiro de quarentena em tempos de Covid-19 (Foto/Arquivo Pessoal)

Inicialmente, ela ficou encantada com as estratégias de povos originários para a expansão da subjetividade descritas em Ideias Para Adiar o Fim do Mundo, livro de Aílton Krenak, um dos principais pensadores indígenas contemporâneos do Brasil.

— Uma das ferramentas que eles usam é o sonho, como forma de se interligar ao mundo. Isso me pareceu muito oportuno como elemento de resistência neste momento — diz.

Com a leveza de uma sonhadora, Fê saltou da leitura de Krenak para o ensaio de Jonathan Crarya, 24/7 – Capitalismo Tardio e os Fins do Sono, livro que descreve os esforços do Departamento de Defesa dos EUA para decifrar a atividade cerebral de pardais de coroa branca, espécie de pássaros capaz de ficar até sete dias sem dormir nos períodos de migração.

Para a inteligência bélica, importa achar meios de transpor essa incrível capacidade de preservar a vigília das aves migratórias para as tropas militares, tornando-as mais produtivas nos campos de batalha. Mas não é só isso.

— Historicamente, as inovações tecnológicas da indústria bélica se incorporam mais cedo ou mais tarde à vivência social, já que é preciso continuar gerando dinheiro depois que a guerra termina — anota Fê.

Assim, sob o olhar atento de Pipoca, Fê concluiu que o sono pode ser o derradeiro refúgio do ser humano frente ao processo de mercantilização da vida. Em outras palavras, talvez seja este o último espaço ainda não ocupado pelo sistema que busca fazer com que sejamos consumidores e geradores de riqueza durante as 24 horas do dia, 7 dias por semana.

Por essas e outras, a partir das vivências profundas e delicadas de sua quarentena, ela aconselha as pessoas queridas de suas relações, ainda que a distância:

— Cuidem do olhar, vejam coisas bonitas e durmam bastante, já que sonhar pode ser também uma forma de resistência.

isolamento dentro do isolamento

Desde que sentiu sintomas como tosse seca, alguma falta de ar e “uma pontinha de febre aqui e ali”, compatíveis com a Covid-19, o roqueiro e produtor musical Eduardo Dornelles, o Edu K, líder de bandas como DeFalla, se isolou dentro do quarto do apartamento que divide com os pais, já octogenários, na fronteira entre o Cristal e a Tristeza, na zona sul de Porto Alegre.

No início do ano, o plano de Edu K era se mudar para o meio do mato, em Santa Catarina, para fugir das neuroses urbanas. A pandemia alterou essa rota sem aviso prévio e fez com que se trancasse em casa com a família no começo de março.

— Sou caseiro e ficar recolhido não me afeta psicologicamente. O que me pegou pela canela foi ver bastante gente na rua, sem máscaras ou luvas, quando eu precisava ir ao supermercado uma vez por semana. Eu via uma nuvem de coronavírus ao redor das pessoas.

Edu K no quarto/estúdio (Foto/Arquivo Pessoal)

Edu K no quarto/estúdio (Foto/Arquivo Pessoal)

Aí apareceu a “cartilha de sintomas” da Covid-19, apesar dos rituais rigorosos de proteção e higienização a cada saída para a aquisição de mantimentos.

— Sou do tipo detalhista, quase neurótico, que esteriliza cada pacote de compras. Não adiantou — relata.

Como não há testes disponíveis para casos considerados de menor gravidade, para se tranquilizar Edu K buscou orientação virtual com médicos que atendem através do site Missão Covid.

— A pessoa se cadastra no portal e, em seguida, eles fazem uma chamada de vídeo. Fui muito bem atendido — elogia.

Na quinta-feira, 30/4, completando o sexto dos 10 dias de distanciamento dos pais, recomendados pelos médicos, já estava praticamente sem sintomas. Ainda assim, só abandona o refúgio para ir ao banheiro, deixando um rastro de álcool gel pelo corredor. No mais, a comunicação doméstica se dá por WhatsApp.

— Até agora, meus pais não apresentaram sintomas. É uma geração de faca na bota, que não se entrega facilmente — comenta, orgulhoso.

Alguns dias antes, o músico havia divulgado um vídeo no Instagram depois de ver postagens de amigos em reuniões sociais, churrasquinhos ou passeando à beira da orla do Guaíba, desrespeitando as recomendações de isolamento social.

— Sem ser grosseiro ou querer interferir na conduta de ninguém, resolvi dar um alerta. Colocar a sua própria vida e a dos outros em risco é descaso, além de falta de empatia e gentileza — justifica.

Com lugar de destaque na cena do rock brasileiro desde os anos 1980, graças ao talento e à irreverência, Edu K vai continuar mandando recados pela web. Para isso, deslocou a arara de roupas para o centro do quarto, que se transformou num hibrido de dormitório e estúdio. De lá, planeja disseminar uma “estética da quarentena” por meio de áudios, fotos e vídeos musicais.

— Antes da pandemia de lives que chegou junto com a Covid-19, eu já tinha cogitado me dedicar a produções caseiras, para ficar independente de um sistema do qual não consigo ou talvez não deseje fazer parte — explica.

Neste particular, ele constata que a pandemia do novo coronavírus abriu portas para possibilidades que boa parte dos artistas até então desconhecia, além de livrá-los da exigência de produções sofisticadas.

— Até pouco tempo atrás, home office era palavrão. Agora, estamos todos trabalhando em casa. Descobrimos que é possível fazer vídeos de um jeito tosco, improvisando cenários com arames ou com o que estiver à mão. Não sei o quanto isso vai durar, mas não deixa de ser uma libertação para os artistas — confia.

Há quem não se habitue com facilidade ao isolamento social.

Apesar da vista privilegiada, que alcança as ilhas do Guaíba emolduradas por cores alaranjadas no pôr-do-sol, o fotógrafo Marcelo Nunes sentia-se ansioso e desconfortável nas primeiras semanas de confinamento com a mulher, Shana, e o casal de filhos no apartamento do 21º andar num edifício do Centro Histórico da Capital.

Faxina na janela do 21º andar (Foto/Arquivo Pessoal)

Faxina na janela do 21º andar (Foto/Arquivo Pessoal)

Habituado a correr de um lado para outro, na agitada rotina da produtora Bandits Films, Marcelo se viu obrigado a puxar o freio e aprender as lides caseiras de uma hora para outra.

Foi a duras penas. Tomou choque elétrico ao pintar uma parede, abriu um buraco no pé ao pisar num espeto de churrasco e, pior, causou diarreia em toda a família ao se arriscar no fogão para improvisar um bolo ao final de tarde. Depois disso, assegura, aprendeu a cozinhar “com pedra, se for preciso”.

O bom humor é contraveneno para a monotonia.

Melhor ainda é fazer companhia à filha mais velha, Ana Maria, de 16 anos, para lagartear na sacada – asmática, a garota precisa pegar sol. Com o caçula Lucas, de 10 anos, Marcelo improvisou um autorama com carrinhos feitos de pedaços de madeira. A convivência próxima se completa com sessões de filmes e acompanhamento das aulas remotas da escola.

— Tem dias mais difíceis, outros menos. A saída é tentar criar uma rotina — diz.

No campo profissional, Marcelo se dedica à pré-produção de projetos de fotografias e vídeos, que serão executados depois que a pandemia passar. Seja como e quando for, ele não vê a hora de andar mais uma vez pelas ruas da cidade.

— Sabe do que mais sinto falta? Tomar uma cerveja de pé, no balcão de um boteco, rodeado de gente — admite.

Poéticas visuais

Mescla de “refúgio, aconchego e prisão”, a casa em que Bebê Baumgarten se isolou do mundo desde março é, ao mesmo tempo, cenário e personagem da quarentena da jornalista, uma das principais divulgadoras da área cultural de Porto Alegre.

— A casa e eu somos um só corpo nesses dias. Nela eu vivo há 50 anos e todas as lembranças da infância, da juventude e da mulher adulta que sou estão vivas nesse aqui e agora. Entro na casa e entro dentro de mim — sintetiza ela.

Uma vez por semana, visita o filho Gil e o netinho Tom, que nasceu no final do ano passado, além da irmã Maíra. Com Malu, a outra irmã, que mora em Toronto, no Canadá, conversa em vídeos pelo WhatsApp. De resto, convive com a solidão, que espia cada canto da casa. Bebê chega a ficar três dias sem falar com ninguém.

— Esqueço até o som da minha voz — diz, surpresa.

Durante a quarentena, ela reativou o blog Meus Arrepios – Pedaços, Impressões e Textos, como exercício de memória e reflexão sobre as perspectivas da vida daqui para frente. Já publicou 14 novos textos:

— A vontade de escrever veio pela disponibilidade de tempo, mas também como uma necessidade orgânica de me expressar. Todo dia tenho uma ideia nova.

Além disso, Bebê dá caminhadas solitárias pelo bairro Medianeira, além de tocar tambor e bateria no meio da sala, em sintonia com outra de suas facetas cotidianas – ela faz parte de grupos de percussão como Maracatu Truvão, Bloco da Laje e As Batucas – Orquestra Feminina de Bateria e Percussão.

— Ainda bem que não tem vizinho muito próximo — diverte-se ela.

Convidada para participar do projeto CoVida em Família, no qual a fotógrafa Ana Karla Severo registra imagens de pessoas em regime de quarentena na porta de suas casas ou nas sacadas dos apartamentos, com algum objeto que represente o momento delas em meio à pandemia, Bebê escolheu mostrar um instrumento percussivo – o xequerê.

Fotógrafa que, em tempos de normalidade, atua no segmento documental de família, registrando cenas do cotidiano nas casas das pessoas, Ana Karla teve a ideia de documentar fragmentos do isolamento social, gerando memórias do período de quarentena para exibi-las numa futura exposição. 

— Daqui a cinco, dez ou 20 anos, talvez possamos relembrar com gratidão tudo que estamos passando, celebrando a vida, a saúde e a união.

As fotos captadas durante a quarentena serão editadas em preto e branco. Quando for possível retomar os contatos humanos, Ana Karla pretende registrar os reencontros com cenas espontâneas em cores vívidas, numa segunda etapa do projeto CoVida em Família.