Um “bah!” com sotaque francês

Com vida de andarilha, a escritora, cineasta, cantora e ativista Charlotte Dafol fez do brasil a sua nova casa

Charlotte em abril de 2018, no Rio: temporada de 18 meses cantando e tocando violão em praça pública e morando em casa de amigos ou quartos alugados (Foto/Mauro Marques)

Charlotte em abril de 2018, no Rio: temporada de 18 meses cantando e tocando violão em praça pública e morando em casa de amigos ou quartos alugados (Foto/Mauro Marques)

Se alguém fosse descrever essa andarilha de múltiplos talentos e atividades, bem que poderia resumir:

— É uma francesa que diz “bah!” no Rio de Janeiro.

Pelo menos é o que sugere o livro de estreia de Charlotte Dafol, Como Num Romance, um relato da temporada de 18 meses (entre 2017 e 2018) no Rio de Janeiro da escritora, cantora, violonista, cineasta, fotógrafa, desenhista e ativista social nascida em Paris, em 1987, atualmente radicada em Porto Alegre.

Conforme a apresentação da Libretos, responsável pela publicação, ao longo de 124 páginas Charlotte apalpa a cidade em busca de encontros e trocas, às vezes beirando o cinismo, outras vezes agarrando-se a fortes momentos de humanidade. O livro – uma seleção de crônicas, poemas e desenhos – foi lançado virtualmente no dia 10/8, na página da editora no Facebook.

Autorretrato

Autorretrato

Na estada no Rio, ela morou em casas de amigos ou peças alugadas, cantou e tocou violão para arrumar trocados em locais públicos como a Praça General Osório, em Ipanema, ou o Largo do Machado, nas Laranjeiras, além de participar de manifestações de rua e ocupações urbanas.

Como Num Romance estava pronto há cerca de dois meses, mas Charlotte achou melhor aguardar a evolução da pandemia da covid-19 antes de lançá-lo. Ela explica que, nos primeiros tempos da quarentena, ninguém estava com cabeça para participar de lançamentos de livros.

— Como a vida precisa continuar, talvez agora as pessoas estejam um pouco mais aliviadas ou, pelo menos, habituadas à nova situação — acredita ela.

O sotaque gaúcho Charlotte adquiriu em 2007, quando se mudou para Porto Alegre a fim de cumprir intercâmbio estudantil durante o curso de Ciências Políticas do Instituto de Estudos Políticos de Paris (conhecido como Sciences Po).

Na época, a escolha do destino foi quase casual.

A sugestão do Brasil veio de um professor de violão, francês que admirava a música brasileira e já havia morado no País. Já a opção por Porto Alegre tem a ver com a sede da Associação Brasileira de Intercâmbio Cultural (ABIC, da rede internacional ICYE), ONG responsável pela viagem, que tem sua base na capital do RS.

— Quando cheguei, não falava nada em português, nem “bom dia” — recorda ela.

Hoje, não só fala, mas escreve na língua de Camões!

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Como Num Romance

“Em maio de 2017, eu desembarcava no aeroporto Santos Dumont, carregando uma mochila e um violão, e contando com vagas promessas de hospedagem e trabalho. (…) De trabalho, não consegui quase nada e, mesmo tocando na rua para cobrir custos do dia a dia, as minhas economias se esvaíram ligeirinho nos prazeres da vida”

Trecho do livro (Foto/Otávio Teixeira)

De volta a Paris em 2008, para concluir a faculdade, sempre que podia retornava para passar as férias em Porto Alegre. Sentia falta dos amigos da Cidade Baixa, onde havia perambulado pelos bares e participado de saraus musicais do duo Batuque de Cordas. Quando a saudade apertou de vez, a decisão de se mudar de mala e cuia foi tomada num rompante, de manhã, ao despertar:

— Abri os olhos e pensei: “Não quero mais morar na França”. Um mês depois, estava dentro do avião — conta.

Ainda viajou durante seis meses pela América Latina – Bolívia, Peru, Equador e outras regiões do Brasil –, passando o chapéu enquanto cantava em ruas e praças, antes de se radicar em Porto Alegre, em 2013.

Aqui, trabalhou como garçonete no bar Parangolé e também na banca da Cooperativa Aecia nas feiras ecológicas do Menino Deus e do Bom Fim. Paralelamente, abriu carreira musical no circuito de bares da CB até formar, no ano passado, a banda Cha & Queixada, junto com Paula Finn (pandeiro e castanholas), Paulinho Bettanzos e Marcelo Eguez (percussões). Uma releitura de MPB e samba, com influências de flamenco, ritmos uruguaios e música eletrônica, marca o repertório da banda, que, aliás, vai dar uma canja no lançamento de Como Num Romance.

Após lançar o primeiro livro, Charlotte se prepara para estrear também no cinema.

Fotógrafa em manifestação de rua no Rio, em 2018 IFoto/Mauro Marques)

Fotógrafa em manifestação de rua no Rio, em 2018 IFoto/Mauro Marques)

No começo de 2019, ao retornar do Rio de Janeiro, ela deu início à produção do longa-metragem De Olhos Abertos, sobre o Boca de Rua, jornal escrito e vendido nas esquinas de Porto Alegre, desde 2000, por moradores de rua, apoiados pela Alice (Agência Livre para a Informação, Cidadania e Educação). A publicação já havia sido tema do curta Vozes de Uma Gente Invisível, com direção de Marcelo Andrighetti. em 2013.

O dinheiro para a produção de De Olhos Abertos foi arrecadado por meio de uma vaquinha eletrônica e, a exemplo do livro, o filme ficou pronto em plena quarentena da covid-19, por isso, ainda não foi apresentado em sessões presenciais. A ideia é que circule por festivais antes de desembarcar em plataformas digitais, canais de televisão ou cinemas.

Assim, o documentário de Charlotte foi exibido no circuito online da Mídia Library, mostra paralela do Festival Internacional Visions du Réel, na cidade de Nyon, na Suíça, em abril deste ano.

Em setembro, deverá ser levado ao Circuito Inffinito de Festivais em Miami e Nova York, nos Estados Unidos. No mês seguinte, passará no Young Film Market, mostra exclusivamente dedicada a jovens diretores do Social World Film Festival, em Vico Equense, nas proximidades de Nápoles, na Itália.

A fotografia é outra faceta da francesa radicada no Sul do Brasil. Já expôs em mostras no Rio, Porto Alegre e Paris, com imagens sobre uma ocupação protagonizada por 70 famílias na zona norte carioca. Boa parte do trabalho fotográfico de Charlotte está exposto também no Flickr.

— A fotografia é uma maneira de me aproximar de pessoas, projetos e lugares que me atraem. O curioso é que, no Rio de Janeiro, ela me levou a conhecer cantos fora do mapa turístico da cidade, que depois apareceram nas crônicas publicadas no livro — comenta Charlotte, andarilha que, com olhar ao mesmo tempo afetuoso e crítico, captura e expõe o Brasil, país que escolheu para morar, vaguear, amar e curtir.