A história do 512

À venda, o Espaço Cultural 512, uma das principais casas noturnas de Porto Alegre, tem como principal atrativo uma rica história identificada com as artes e a memória afetiva dos fiéis frequentadores

Bar da Rua João Alfredo está à venda por R$ 800 mil, mas controladores admitem buscar investidores, desde que os novos sócios assumam a operação (Rodrigo Beck/Divulgação)

Bar da Rua João Alfredo está à venda por R$ 800 mil, mas controladores admitem buscar investidores, desde que os novos sócios assumam a operação (Rodrigo Beck/Divulgação)

A Rua João Alfredo tinha segredos para contar a transeuntes distraídos em outubro de 2006.

Uma das surpresas bem que podia ser a descoberta de um novo bar – no caso, um boteco de portas envidraçadas, com balcão e quatro ou cinco mesas dispostas no espaço exíguo da peça da frente da casa do nº 512 da antiga Rua da Margem, na Cidade Baixa.

Aliás, era esse o nome do bar – 512. Só. Mais nada.

Para falar a verdade, nem bar era, e sim um atelier. Desde o ano 2000, estavam aninhados ali os artistas plásticos Wilson Cavalcante (o Cava), Antônio Augusto Bueno, Lisete Bertotto, Adriana Xaplin e Daliana Mirapalhete.

Fachada original com duas portas envidraçadas junto à calçada (Foto/Acervo 512)

Fachada original com duas portas envidraçadas junto à calçada (Foto/Acervo 512)

Quando o aluguel subiu e a grana escasseou, uma das soluções cogitadas foi vender os sanduíches preparados por Daliana em meio às atividades do atelier – as mãos que esculpiam figuras de argila e bronze também sabiam misturar condimentos e especiarias com talento e originalidade.

A ideia evoluiu para um bar café – o 512. Pelo menos era o nome-fantasia, já que a razão social do estabelecimento até hoje é Santa Ana Cafeteria.

Correu a versão de que o nome oficial da bodega homenageava o vinho argentino Santa Ana, bastante popular entre os artistas do atelier da João Alfredo.

Na realidade, a razão social foi inspirada numa escultura de Santa Ana (mãe de Virgem Maria e avó de Jesus Cristo) restaurada por Daliana a pedido de um vizinho, proprietário da casa localizada no nº 500 da João Alfredo.

Daliana Mirapalhete, escultora, historiadora e primeira dona do 512

Daliana Mirapalhete, escultora, historiadora e primeira dona do 512

— Achei bonita a imagem da santa mostrando um livro para uma criança. Na hora de registrar a empresa, lembrei logo dela — conta Daliana.

No papel, Daliana era a dona do bar, junto com Adriana Xaplin, mas esta não demorou a desistir do negócio.

Em julho de 2007, Daliana fez a primeira reforma do 512, agregando uma segunda peça da casa. Foi instalado um balcão novinho em folha, ou quase isso – como quase toda a decoração e o mobiliário do bar, era feito de material reciclado a partir de utensílios abandonados como lixo nas calçadas.

No caso do balcão, a origem eram antigas janelas venezianas de madeira. Já o forro do 512 se compunha de caixotes de frutas, que haviam sobrado de uma exposição de Daliana sobre arte indígena no Centro Cultural CEEE Erico Verissimo.

O ambiente de simplicidade e despojamento atraiu um público formado principalmente por artistas, jornalistas, arquitetos, historiadores, universitários e desocupados em geral. Pronto: o 512 virou um bar cult.

Entre os frequentadores assíduos, estava o casal Roberto Rossi Jung e Carmelina Donato Castro:

— O 512 era uma sala de visitas, onde recepcionávamos os amigos. Eu me sentia à vontade até para jogar xadrez com o Hugo Varella em meio à balbúrdia. Aliás, de tanto que me viam por lá, as pessoas deixavam a minha correspondência com a Daliana — diz Roberto, jornalista e escritor.

Clique ou toque nas imagens abaixo para ver Carmelina na porta do antigo 512, Roberto (de chapéu) jogando xadrez com Hugo e a anotação da receita do “Anarco Pão” de Adriana Deffenti.

Alma de artista

O cardápio, além de pizzas, picadinho e kibe, oferecia duas modalidades de sanduíches. O “Pão Expressão” vinha recheado com carne de panela, queijo, cogumelos e brócolis. Já o “Anarco Pão” – como o próprio nome dizia – respeitava os direitos individuais. Tratava-se de um sanduíche feito ao gosto do freguês com o que havia de temperos na geladeira.

A versão personalizada do “Anarco Pão” da cantora Adriana Deffenti, por exemplo, geralmente tinha pão com gergelim, nata, mozarela, provolone, cogumelo ostra, pimenta cumari, maçã, rúcula e castanhas moídas. Nada mal.

O violonista Darcy Alves, lenda da noite de Porto Alegre, com Valtinho do Pandeiro (calça branca) e Silfarnei Alves (camisa azul) na primeira fase do bar

O violonista Darcy Alves, lenda da noite de Porto Alegre, com Valtinho do Pandeiro (calça branca) e Silfarnei Alves (camisa azul) na primeira fase do bar

Mais tarde, o cardápio ganhou opções como sopas de abóbora, alho ou cogumelo, além de risoto nos sábados ao meio dia e almoços temáticos nas terças-feiras. Para alimentar o espírito, o 512 promovia exposições, oficinas, saraus, shows acústicos e, como um autêntico boteco, cantorias espontâneas com o violão rodando de mesa em mesa.

Eram noites divertidas, mas, para uma alma de artista, gastar o dia e a madrugada na gestão de um botequim não deixa de ser um desperdício – no caso de Daliana, havia também a necessidade de retomar suas atividades profissionais como historiadora.

Em 2009, o horário de almoço já se encontrava sob a supervisão de Janaína Dalla Vecchia e Daniel Tedesco, mas Daliana estava disposta a se desfazer por completo do bar. Ela propôs, então, a transferência do ponto para dois clientes, Rafael Corte e Francisco Donida, o Punk. Só que havia um terceiro interessado – Guilherme Carlin, fornecedor da Chica, cachaça artesanal servida aos fregueses do 512.

Corte e Punk eram amigos de infância, criados em Erechim (RS), mas nenhum deles conhecia Guilherme, gaúcho que tinha vivido no Tocantins e em Goiás. Para acertar as pontas, os futuros controladores do 512 marcaram encontro no bar Ossip, na esquina da Rua da República com a João Alfredo.

— Tomamos um balde de cervejas para decidir qual o tipo de bar que gostaríamos de tocar. Chegamos à conclusão de que precisava ter preços acessíveis e intensa programação cultural — relata Punk.

Guilherme Carlin: de fornecedor a sócio do 512 (Eduardo Toro/Divulgação)

Guilherme Carlin: de fornecedor a sócio do 512 (Eduardo Toro/Divulgação)

Entre uma cerveja e outra, ficou decidido que, para abrir a sociedade, cada um entraria com R$ 150 – como não tinha a quantia, Punk pediu emprestado à irmã, Paola. O dinheiro serviu para comprar quatro caixas de cerveja e alguns sacos de amendoim, volume suficiente para a primeira noite. Menos mal que a Chica estava garantida.

— No começo, a gente mais se divertia do que trabalhava. Aos poucos, o bar tomou corpo e virou ponto de encontro não só de amigos e conhecidos, mas também de outras galeras que circulavam pela Cidade Baixa — acrescenta Punk.

Rebatizado como Espaço Cultural 512, o estabelecimento ganhou impulso graças à junção de habilidades e competências dos sócios – a capacidade de aglutinar e divertir as pessoas de Punk; o empreendedorismo e as técnicas de comunicação de Guilherme (recém graduado em Jornalismo pela UFRGS); o espírito sereno e o conhecimento de gastronomia de Corte (formado pela Unisinos).

Sonho de verão

Em dezembro de 2011, os administradores decidiram abrir uma sucursal do 512 na praia da Ferrugem, em Garopaba (SC), para compensar a diminuição do movimento em Porto Alegre nos meses de calor. O sonho de verão se mostrou, ao final das contas, pura ilusão. Em nenhum momento, a filial cumpriu a meta de gerar faturamento de R$ 1.800 por noite (patamar mínimo para não dar prejuízos), exceto na festa de encerramento da temporada. Tarde demais.

— O que animava era a perspectiva de trabalhar e aproveitar a praia, só que a operação não estava estruturada. Ainda por cima, perdemos o Punk na gestão do negócio — anota Guilherme.

Punk (de bermuda estampada) no 512 da Praia da Ferrugem, em Garopaba

Punk (de bermuda estampada) no 512 da Praia da Ferrugem, em Garopaba

A proposta de alternar a equipe entre matriz e filial a cada 15 dias foi por água abaixo assim que o Punk sinalizou a vontade de se dedicar exclusivamente ao posto avançado do 512 no litoral sul-catarinense.

O passo seguinte foi dado certa manhã, por volta das 7 horas, ao final do expediente, depois que ele fechou portas e janelas do bar e se dirigiu até a praia com a intenção de fumar um cigarro para relaxar. Foi quando avistou dois surfistas chegando para aproveitar as ondas da Ferrugem.

— Aquela imagem me balançou. Os caras começando o dia cheios de energia, enquanto eu ainda nem tinha dormido.

Antes da última tragada, Punk amadureceu a ideia de abandonar a sociedade do 512 para se radicar em definitivo à beira-mar. Hoje, além de pegar ondas na Ferrugem, é dono de uma oficina de pranchas de surf em Garopaba, onde mora com a mulher e o filho.

Vida que segue. Além dos sócios-proprietários, fazia parte da “belle époque” do 512 (é assim que a turma se refere aos primeiros tempos do bar sob a nova direção) a equipe de trabalho composta por Valéria Payeras, Marcos Westphalen e Sílvia Ramos (espanhola hoje também radicada em Garopaba).

Serginho Moah (à esq.) e Tonho Croco no palco do pub (Divulgação/512)

Serginho Moah (à esq.) e Tonho Croco no palco do pub (Divulgação/512)

Outra figura de destaque era Rodolpho Bittencourt, o Rodox. Nascido em Cascavel (PR), o rapaz oriundo de família da Minas Gerais morou 18 anos em Porto Alegre, dos quais “metade dentro do 512”, assegura ele.

— Amigos, romances, projetos, tudo veio dali — assinala.

Literalmente um cliente da primeira hora do 512 (estava presente no dia em que Daliana inaugurou o bar), quando os novos sócios assumiram o empreendimento, Rodox foi deslocado para o caixa, já que era ágil para fazer contas e conhecia quase todos os fregueses.

Mas ele se destacou mesmo ao gerenciar a agenda musical do 512, abrindo espaço para instrumentistas que estavam despontando na cena porto-alegrense, como Nicola Spolidoro, Rafa Marques, Matheus Nicolaiewsky e Michel Dorfman, da banda Los 4 Amigos.

— É um orgulho ter apostado na música instrumental, que ocupou as noites de quintas-feiras do 512 até o ano passado, quando a programação foi interrompida pela pandemia da covid-19 — diz Rodox, que hoje vive em Itacaré, no sul da Bahia.

Clima de camaradagem

Com o passar dos anos, o 512 passou a abrigar quase todos os gêneros e estilos musicais – do rock ao samba, passando pelo blues e o jazz, com incursões pelo axé e o soul – na programação de shows de terças a sábados. Domingo era dia de festas de apelo popular, como o Baile Brasa, dos DJs Kafu Silva, Fausto Barbosa e Vagner Medeiros, e a Made in Brazil, comandada pelos DJs Manoel Canepa e Damon Meyer.

Pista lotada no Baile Brasa nos domingos à noite (Lucas de Mello/Divulgação)

Pista lotada no Baile Brasa nos domingos à noite (Lucas de Mello/Divulgação)

Para não perder a tradição, o 512 foi sede permanente de exposições de artistas visuais ao longo da década de 2010.

A consolidação da agenda cultural acompanhou a expansão física do bar. Em 2011, o 512 incorporou a casa ao lado, a de nº 506, o que permitiu não apenas aumentar a área de circulação de clientes, mas também montar um palco para shows de maior envergadura. Em 2015, nova reforma adicionou o imóvel de nº 500 da João Alfredo, completando a estrutura preservada até a atualidade.

Em 2020, foram realizadas obras de remodelagem do design interno e ampliação da capacidade para 436 pessoas, respeitando os protocolos de distanciamento social do enfrentamento à pandemia. Com isso, o bar passou de uma área de 35 m² (nos tempos de Daliana) para 611 m² (com 412 m² de área construída).

Ainda que tenha se agigantado como local de entretenimento, em comparação à esfera acolhedora de boteco dos primeiros tempos, o 512 conseguiu manter um clima de proximidade e camaradagem nas relações entre os públicos interno e externo.

— Quem trabalhava lá se sentia em casa, feliz, acolhido, e isso passava para os clientes — elogia Pagu Gomes, gerente do 512 nos últimos dois anos.

Reforma ampliou capacidade e adequou espaço interno aos protocolos da covid-19 (Rodrigo Beck/Divulgação)

Reforma ampliou capacidade e adequou espaço interno aos protocolos da covid-19 (Rodrigo Beck/Divulgação)

A intenção de colocar o 512 à venda passa pela disposição dos sócios de priorizar outros negócios. Guilherme, por exemplo, pretende se dedicar exclusivamente à Cachaça da Chica:

— Foi ela que me oportunizou as melhores coisas na vida, inclusive, administrar o 512 — diz ele, que está negociando a exportação da cachaça artesanal, num primeiro momento, para Portugal e, a seguir, para outros países da Europa, como Espanha e Alemanha.

Segundo Guilherme, já há dois interessados no 512, um deles com visita agendada para a semana que vem.

Sem dívidas trabalhistas e com alvará do Corpo de Bombeiros para funcionamento até 5h da madrugada, o Espaço Cultural 512 está avaliado em R$ 1,2 milhão, mas o valor para a venda é de R$ 800 mil, se o comprador assumir o passivo referente a financiamentos feitos para a reforma de 2020 e pagamento de fornecedores e tributos.

— A vida noturna é recompensadora, inclusive financeiramente, mas demanda bastante energia e dedicação. Sinto que, neste momento, não consigo mais dar a devida atenção que o 512 merece e é chegada a hora de tocar outros projetos — acentua Rafael Corte.

Os atuais controladores não descartam buscar investidores e continuar no negócio, desde que os novos sócios se disponham a tomar conta da operação.

— Quem ficar com o ponto terá estrutura para shows, bar e cozinha, além da possibilidade de trabalhar como restaurante durante o dia e casa noturna — diz Guilherme.

Seja como for, o principal ativo do 512 é a sua rica história construída ao longo dos últimos 15 anos, uma trajetória marcada pela identidade com a produção artística de Porto Alegre e a memória afetiva de seus fiéis frequentadores.