O último pé-sujo da Cidade Baixa

Bar do Rossi PRESERVA A TRADIÇÃO dos botecos populares, que estão desaparecendo do bairro MAIS boêmio de Porto Alegre

Final de tarde no Rossi, bar que, há 20 anos, carrega a bandeira da autêntica boemia na esquina da Lima e Silva com a Lopo Gonçalves (Foto/Rua da Margem)

Final de tarde no Rossi, bar que, há 20 anos, carrega a bandeira da autêntica boemia na esquina da Lima e Silva com a Lopo Gonçalves (Foto/Rua da Margem)

Sobrou só o Bar do Rossi.

De uns tempos para cá, os botecos que dispensam glamour e reúnem públicos ecléticos – atraídos pela informalidade do ambiente e, principalmente, pelo baixo preço das bebidas – estão em vias de extinção na Cidade Baixa, tradicional bairro boêmio de Porto Alegre.

O primeiro a sair do mapa da CB foi o Garibaldi, ou Bar da Tia, em maio de 2017. Neusa Tormes – a dona do boteco da Avenida Venâncio Aires, defronte à Praça Garibaldi – resolveu dar um tempo para curar dores ósseas decorrentes de 21 anos de labuta de pé, atrás do balcão. Ficou órfã a galera que frequentava o “Garibas”, incluindo desde estudantes da área de ciências humanas da UFRGS até ativistas da diversidade sexual e devotos das bikes como opção de mobilidade urbana, passando ainda por clássicos boêmios adeptos do martelinho a qualquer hora do dia.

Em novembro de 2020, chegou a vez de o IN Sônia Bar encerrar as atividades em função da crise econômica provocada pela pandemia da Covid-19. Como autêntico pé-sujo, o bar de Sonia Maria Ferreira Bastos (que se candidatou a vereadora em 2020, em Porto Alegre, pelo PSOL) acolhia tribos urbanas de vários espectros, a maioria formada por jovens de baixo poder aquisitivo, na Rua José do Patrocínio, entre a Lopo Gonçalves e a Joaquim Nabuco.

Para representar a tradição dos bares populares da Cidade Baixa, restou o Rossi Bar, entrincheirado na esquina da Lima e Silva com a Lopo Gonçalves.

— De boteco mesmo, de verdade, agora só tem o meu para carregar a bandeira — resigna-se o dono do Rossi.

Afonso foi cobrador de ônibus e trabalhou como gerente de RH antes de se transformar em dono de bar  (Foto/Rua da Margem)

Afonso foi cobrador de ônibus e trabalhou como gerente de RH antes de se transformar em dono de bar (Foto/Rua da Margem)

Dito isso, a primeira coisa a ser esclarecida é que o Bar do Rossi não é do Rossi, e sim de Afonso Ferreira Filho, de 63 anos. Como assim?

Em 2001, quando Afonso assumiu o ponto, o estabelecimento já tinha sido batizado com a junção das primeiras sílabas de nome e apelido do casal de antigos proprietários – Roberto e Cissa. Espera aí, neste caso, não era para ser Roci, em vez de Rossi?

— Deveria, sim, mas acho que fizeram uma adaptação, já que Rossi fica mais bonito e é mais comum — aclara Gabriela, filha de Afonso, que divide o atendimento à clientela do atual Bar do Rossi com o pai.

A princípio, Afonso tinha intenção de mudar a marca, mas os clientes insistiam em chamá-lo de Rossi. E, quando se encontravam na rua, diziam: “Vamos lá no Bar do Rossi”. Aí não teve jeito.

A cara de pé-sujo está estampada não só no atendimento personalizado e familiar e no espaço físico sem esbanjamento – em tempos de distanciamento social por causa da pandemia, cerca de uma dezena de mesas estão espalhadas na área ao ar livre, separada da calçada por uma grade. O caráter do boteco está inscrito, principalmente, na filosofia do bar.

— De forma alguma, permitimos que se manifeste preconceito racista ou homofóbico aqui dentro. Isso a gente abomina. Esse é um lugar de livre arbítrio — avisa o proprietário.

Mas, no cardápio, ofertas como a do litrão de Polar ou Brahma a R$ 11 ou da garrafa de 600ml de Original por R$ 10 não deixam dúvidas sobre o perfil do negócio. Cervejas mais sofisticadas, como Serramalte, são consumidas a módicos R$ 11 (todos os preços são de fevereiro de 2021). Afonso conta que já teve a chance de elitizar o bar, mas preferiu recusar a proposta dos investidores que bateram à porta.

— Queriam que eu vendesse long neck e cobrasse mais caro pelas outras cervejas, mas eu disse não. Prefiro manter o preço acessível e as amizades que fiz em 20 anos. O lado financeiro pesa, é claro, mas a satisfação de ter um bom ambiente de trabalho e fazer o que se gosta é mais importante — resume ele.

O bluesman Gene Birdlegg Pittman (de chapéu) no Bar do Rossi, em 2019 (Acervo Pessoal/Afonso Ferreira Filho)

O bluesman Gene Birdlegg Pittman (de chapéu) no Bar do Rossi, em 2019 (Acervo Pessoal/Afonso Ferreira Filho)

A recomendação acerca do clima organizacional não é fortuita – Afonso sabe do que está falando. Trabalhou por mais de 15 anos no setor de Recursos Humanos do Moinho Santista, no bairro São Geraldo (zona norte de Porto Alegre). Lá, ocupou os cargos de gerente e supervisor de RH.

O currículo não se limita a funções executivas. Ele também foi cobrador de ônibus da empresa Soul durante cinco anos, quando morou em Alvorada, no começo da década de 1970. E, ainda em Cachoeira do Sul, onde nasceu, ajudava o pai a cuidar do açougue da família.

Já no Bar do Rossi, a princípio a ideia era privilegiar o almoço, o que fazia sentido. No começo do século, o movimento boêmio da Cidade Baixa estava concentrado na Rua da República, alguns quarteirões adiante. O Rossi trocou o dia pela noite quando Afonso pôs música mecânica para alegrar o ambiente.

Dono de um acervo de 2,5 mil vinis e 3 mil CDs de blues, Afonso repassou aos clientes a paixão pelo gênero musical criado por escravos americanos nas plantações de algodão do sul dos Estados Unidos, dando uma nova identidade ao bar.

— Caras como Jimmy Page, Eric Clapton e Jeff Beck são guitarristas notáveis, mas não servem nem para amarrar os sapatos do B.B. King — costuma dizer.

Daí se percebe que a visita de músicos como Gene Birdlegg Pittman, Jimmy Burns, Lazy Lester, Carl Johnson e Phil Guy, quando cumprem agenda de shows em Porto Alegre, não é mera casualidade. Igualmente, o bar é parada obrigatória de bandas e músicos do centro do País de passagem pela cidade, como Blues Etílico, Big Gilson e Carlitos Patrone, sem falar de artistas e produtores locais, como a turma da Confraria do Blues. Mas, como autêntico pé-sujo, o bar do Rossi contempla uma diversidade de público:

— Vem gente de todas as tribos. Eu, por exemplo, apesar de ser mais ligado à MPB, estou sempre aqui. Esse é o barato do Rossi — elogia o músico da noite Duarte Ribeiro.

Clara comemorando o aniversário de Afonso no Rossi, em 2019

Clara comemorando o aniversário de Afonso no Rossi, em 2019

Por essas e outras, o bar do Rossi virou cult, com direito à citação no livro O homem infelizmente tem que acabar (Editora Zulk, 2019), da escritora e atriz Clara Corleone. Na obra, aparece como “o último boteco que vende cerveja barata no bairro boêmio de Porto Alegre, a Cidade Baixa”.

Até o advento da pandemia, quando alterou os hábitos de boemia para se precaver da doença, ela batia ponto no Rossi ao menos uma vez por semana. Era, muitas vezes, a primeira a chegar. E, mais vezes ainda, a última a sair.

— A gente começa a frequentar bares como o Rossi por causa do preço baixo, porque é quase como beber cerveja em casa. Depois, continua indo, mas já não é mais por isso. Tem um je ne sais quoi nisso. Pessoalmente, gosto por ser um bar simples, porém honesto. Além do mais, ali sou tratada a pão de ló.

Segundo ela, alguns detalhes fazem a diferença. Lembra que, uma vez que o cardápio de refeições do Rossi se reduz à porção básica de batatas fritas, não causa embaraço algum encomendar uma pizza de outro estabelecimento por aplicativo ou até mesmo trazer de casa uma tábua de frios para compartilhar com os amigos na mesa.

Para efeito de comparação, Clara cita o Bar Esperança, título de um filme de Hugo Carvana, de 1983, sobre o clima de cumplicidade de um grupo de amigos que se reúne num boteco de Ipanema, no Rio de Janeiro, que está prestes a fechar para dar lugar a um espigão. Ainda bem que não é o caso do bar do Afonso.

— O Rossi mora no meu coração. Tomara que nunca feche, seria como perder um amigo querido — completa a escritora.

Assim, vida longa ao Rossi, último baluarte dos bares populares. da Cidade Baixa.