Mapa de humanidades

Desde a invasão de mulheres na Casa do Estudante até a reunificação da alemanha, passando por mario quintana e Iberê Camargo, há 45 anos a lente de Achutti registra encontros, vivências e memórias

Papéis picados em apoio à invasão de mulheres na Casa do Estudante da UFRGS, em 1980: ruptura de costumes e padrões de mobilização política (Fotos/Luiz Eduardo Achutti)

Papéis picados em apoio à invasão de mulheres na Casa do Estudante da UFRGS, em 1980: ruptura de costumes e padrões de mobilização política (Fotos/Luiz Eduardo Achutti)

Em 28 de abril de 1980, o fotógrafo Luiz Eduardo Robinson Achutti cursava Ciências Sociais na UFRGS, quando recebeu a notícia da colega Ondina Fachel Leal:

— Amanhã vamos invadir a CEU (Casa do Estudante da UFRGS), às 11h. Tu devias ir lá para dar uma força e fotografar.

Dito e feito. Na manhã seguinte, Achutti desceu ao subsolo do bar da Engenharia (onde estava concentrado o grupo de mulheres), posicionando-se junto à janela, rente à altura da calçada, de onde se avistava uma linha de policiais militares. Nisso, escutou uma das moças avisar: “Vamos, gurias, está na hora”.

Na época, a Casa do Estudante da UFRGS só hospedava universitários do sexo masculino. Nem as mães dos residentes estavam autorizadas a entrar no prédio para visitá-los. Para reivindicar o direito à moradia mista, as mulheres atravessaram a pista dupla da Avenida João Pessoa, no Centro da Capital, e ultrapassaram a porta de entrada da CEU em bloco, para espanto do porteiro de plantão.

Achutti: obra revela o olhar das ruas (Foto/Kátia Arruda)

Achutti: obra revela o olhar das ruas (Foto/Kátia Arruda)

— Deixei-as irem na frente, e logo fui atrás. Fiquei olhando meio atrapalhado, elas passaram pelos brigadianos e foram logo entrando na CEU. Foi quando começou uma chuva de papeis picados, vinda de todos os andares... Eu só tinha a lente normal 50mm, então, o que fazer? Resolvi fotografar de baixo para cima, dois cliques. Lindo de se ver... — conta Achutti.

Na hora, ele não se deu conta, mas estava registrando um ponto de ruptura na história dos costumes e dos padrões de mobilização política em Porto Alegre.

O ato ficou conhecido como a Invasão Feminina do CEU e se constituiu numa das manifestações públicas pioneiras do feminismo brasileiro. Além disso, deu origem ao Liberta, um dos primeiros grupos organizados do movimento no País, que divulgou o episódio num filme na bitola super 8.

A fotografia de Achutti, que ganhou o título de Democracia, faz parte de Fotos que vivi: Achutti 45 anos, livro digital lançado dia 28/11, nas páginas do Instagram e do Facebook e também no site da Ponto UFRGS (loja de produtos institucionais da Universidade). A obra reconstitui a trajetória profissional de Achutti, hoje com 61 anos, que é também antropólogo e professor da UFRGS.

As fotografias estão acompanhadas de textos explicativos, que desenham “não um mapa formado por linhas que levam a um destino, mas um mapa formado por memórias, encontros, humanidades”, salienta ele.

— Sou fotógrafo, mas prezo muito o texto. Gosto de escrever — costuma dizer.

Capa do livro disponibilizado em plataformas digitais

Capa do livro disponibilizado em plataformas digitais

Como repórter-fotográfico, Achutti publicou em veículos como Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, Coojornal e IstoÉ, nas décadas de 1970 e 1980 – em 1987, chegou a criar sua própria agência de fotografias para prestar serviços a jornais e revistas.

A partir dos anos 1990, passou a dar prioridade a exposições e livros, registrando flashes de vivências e incursões a países como Cuba, Nicarágua, Alemanha e França, além de se dedicar à carreira acadêmica.

A invasão da CEU não é o único momento histórico eternizado pela lente de Achutti.

Ele também clicou o comício pelas Diretas Já, em 13 de abril de 1984, quando 200 mil port0-alegrenses se reuniram no Paço Municipal na tentativa de reconquistar o voto direto para a Presidência da República, após 20 anos de ditadura. Mostrou ainda o último show de Elis Regina (Trem azul) em Porto Alegre, no Gigantinho, em 1981.

No Exterior, registrou a noite da reunificação da Alemanha, na virada de 2 para 3 de outubro de 1990, quando mais de meio milhão de alemães cruzou o Portão de Brandemburgo em direção ao Palácio do Reichstag, que voltaria a ser a sede do Parlamento alemão.

Mais cedo, no período da tarde, Achutti havia transmitido um boletim de notícias para o radialista Mauro Borba, da Ipanema FM, “de uma cabine telefônica, a duras penas, muito distante do Brasil e do tempo de uma inimaginável internet madura para as comunicações entre as pessoas”.

— À noite, caminhei no meio daquela massa de gente, mais de uma hora, cumprindo um ritual que não me pertencia, para documentar uma parte da História recente da humanidade.

Bandeira dos EUA ao centro do Portão de Brandemburgo, na noite da reunificação da Alemanha: metáfora do triunfo do capitalismo em forma de imagem

Bandeira dos EUA ao centro do Portão de Brandemburgo, na noite da reunificação da Alemanha: metáfora do triunfo do capitalismo em forma de imagem

Graças à potente iluminação da produção da festa, que facilitava o trabalho das redes de televisão, Achutti conseguiu avistar com nitidez a bandeira dos Estados Unidos no centro do Portão de Brandemburgo. Naquele momento, percebeu estar diante de uma “metáfora em forma de fotografia” – aquela visão simbolizava, para ele, o triunfo do capitalismo frente ao mundo comunista, que desabava do outro lado da Cortina de Ferro.

— O plano era ter estado lá por agora, 30 anos depois, para buscar vestígios do povo da Berlim Oriental, que conheci em 1989, mas a pandemia não me deixou — comenta ele.

Na trajetória de Achutti, há também o estudo de personagens como Iberê Camargo, de quem esteve próximo ao longo do último ano de vida do artista plástico. Além de exposição, essa intimidade resultou na publicação do livro Iberê Camargo por Achutti, de 2004. Outra figura em destaque é Xico Stockinger, tema do livro A Matéria Encantada – Xico Stockinger: ode a um guerreiro, publicado em 2008, que trouxe imagens do ambiente de trabalho do escultor, falecido no ano seguinte.

Mario Quintana, na Praça da Alfândega, nos anos 1980: “um poeta jogando pensamentos ao vento”

Mario Quintana, na Praça da Alfândega, nos anos 1980: “um poeta jogando pensamentos ao vento”

Na obra que está sendo lançada agora, uma das imagens marcantes é a de Mario Quintana, sentado num banco da Praça da Alfândega durante uma edição da Feira do Livro de Porto Alegre, nos anos 1980.

Por um breve instante, o poeta mira a lente do fotógrafo, com ar distante, como se estivesse absorto em pensamentos. Uma mão vira a página do livro no colo e a outra segura um cigarro entre os dedos. Enquanto arde, o cigarro insiste em não se desprender das cinzas.

Assim, as fotografias de Achutti revelam o olhar das ruas, como acentua a filósofa Márcia Tiburi, num dos textos de apresentação de Fotos que vivi: Achutti 45 anos.

Ela foi aluna de Achutti no Instituto de Artes da UFRGS, em meados dos anos 1990, quando cursava artes plástica. “As aulas do Achutti eram uma ponte para a realidade, entendida como a história que podemos viver, como são as fotos que ele fez ao longo da vida. As aulas eram verdadeiras lições de olhar, como são as suas fotografias”, revela Márcia Tiburi.

Fotos que vivi: Achutti 45 anos é o vigésimo livro de Achutti, cuja bibliografia inclui trabalhos individuais como O Guaíba por Achutti (2014) e Fotoetnografia: um estudo de antropologia visual sobre cotidiano, lixo e trabalho (1997), além de obras coletivas a exemplo de Crônica do Solar dos Câmara (1993, com Hélio Nardi Filho e Tabajara Ruas) e Palácio Piratini, (2007, com Paulo Gasparotto, Luiz Antonio de Assis Brasil e Günter Weimer).

Uma síntese do trabalho de Achutti foi feita pelo escritor e cartunista Millôr Fernandes, após posar para Achutti com um falso fardão da Academia Brasileira de Letras, nos bastidores de um show humorístico no Theatro São Pedro:

— Não há grande fotógrafo sem uma segura base cultural, elogiou Millôr, referindo-se ao profissional que estava à sua frente e por trás da câmera.