Um cantinho para africanos fora da África
Bar na cidade Baixa reúne comunidade de negros estrangeiros que vivem em Porto Alegre
Afro Pub: espaço de música, dança e gastronomia de diferentes países, bar é ponto de encontro de estudantes africanos radicados na capital gaúcha
Abahá: lugar em que as pessoas se reúnem, na Guiné Equatorial, para atividades que vão desde uma celebração religiosa até encontros de música, dança e gastronomia.
O termo é um dos mais sagrados da língua dos Fang, etnia majoritária da população que vive no país da costa oeste da África. Na época colonial, abahá era traduzido como casa de la palabra (colônia da Espanha até 1968, a Guiné Equatorial é a única nação africana que adota o espanhol como idioma oficial).
De algum modo, essas casas comunitárias ancestrais inspiraram o Afro Pub, bar inaugurado, há cerca de dois meses, na Rua João Alfredo, na Cidade Baixa, bairro boêmio de Porto Alegre. É o ponto de encontro da comunidade de negros estrangeiros que moram na capital do RS (a maioria formada por universitários que participam de programas de intercâmbio acadêmico).
— Não tínhamos um espaço físico onde pudéssemos cultivar as nossas raízes, escutar a nossa música, dançar a nossa dança, comer a nossa comida. Daí surgiu a ideia do Afro Pub — diz Asid Adult Man, pseudônimo do rapper Esdras Altidor.
Asid é exceção entre os fundadores do Afro Pub – é o único que não nasceu na África, e sim em Môle Saint Nicolas, cidade localizada no norte do Haiti.
Após sobreviver ao grande terremoto que devastou o país, em 2010, causando a morte de centenas de milhares de pessoas, ele buscou refúgio na América do Sul – primeiro no Chile e, depois, no Brasil, onde está há dez anos (morou um tempo em Cuiabá, antes de se transferir para Porto Alegre, em 2019).
Aqui, cursa Publicidade e Marketing, na Faculdade Estácio, em paralelo à carreira de músico.
Dia da África
Da mesma forma, havia também dificuldades de achar um lugar para comemorar as festas que ornamentam o calendário dos filhos da África, como destaca Daniel Ovono Akieme, outro fundador do Afro Pub.
Natural da Guiné Equatorial, ele veio para o Brasil há quatro anos. Após passagem por Feira de Santana (BA), se mudou para Porto Alegre, onde cursa Administração Pública na UERGS.
De fato, o Afro Pub foi criado para preencher mais essa lacuna. Prova disso é que, no sábado, dia 31 de maio, das 3 da tarde até a meia noite, o bar foi palco para a celebração do Dia da África.
“Esse dia representa muito pra nós: é sobre ancestralidade, comunidade, música, dança e alegria. É sobre honrar a história de um povo que moldou o mundo inteiro e continua fazendo história com força, orgulho e arte.”
A rigor, o Dia da África é comemorado, anualmente, em 25 de maio, porque esta é a data de fundação da União Africana, entidade criada em 1963, em Adis Abeba, capital da Etiópia.
Na época, representantes de 30 nações do continente se reuniram para organizar as lutas pela independência e contra a colonização europeia. Em alguns países, como Gana, Mali, Namíbia, Zâmbia e Zimbábue, é feriado nacional.
Só que a festa do Afro Pub foi realizada no dia 31 por razões de logística e organização dos festejos.
No barzinho da Rua João Alfredo, houve exposição de artesanato e desfile de moda africana, além de música e dança (veja uma amostra aqui).
O menu do jantar incluiu couve com amendoim e coco, xiguinha de feijão e peixe frito, além de doce de mandioca. As comidas foram preparadas por Eulanda Maria Daniel, que nasceu em Inhambane, cidade do sul de Moçambique.
Ela vive em Porto Alegre há três anos e cursa Informática em Educação na UFRGS. Além disso, é jogadora de futebol (no momento, atua como zagueira do Futebol Com Vida, clube/SAF de Viamão).
O Dia da África não foi a primeira festa que acontece no Afro Pub.
Desde a abertura, o bar já abrigou a comemoração do Dia da Mulher Moçambicana (a data é 7 de abril, mas a festa aconteceu cinco dias depois). Também acolheu o evento de confraternização da galera do Vôlei Black (em 18 de abril), grupo criado há dois anos por negros que se reúnem para jogar voleibol.
Ainda que seja um ponto de encontro da comunidade de africanos, o Afro Pub recebe também a visita de outros públicos.
Frequentadores habituais do bairro boêmio passam na calçada e se sentem atraídos pela música que escutam. Aí decidem conhecer o espaço, como relata Salvador Osa Eyi Okomo, estudante do curso de Relações Internacionais da UFRGS.
— Qualquer um pode vir ao Afro Pub. E, se não quiser consumir, pode vir só para conversar sobre coisas da África de que não faz ideia ou sobre as quais, talvez, tenha ideias erradas — diz Salvador, que chegou à capital gaúcha há cinco anos.
Retorno às origens
Salvador também é da Guiné Equatorial, a exemplo de Daniel, mas eles não se conheceram lá, e sim em Porto Alegre. Ambos planejam regressar ao país de origem, depois de formados.
— Não pretendo sair correndo. Se tiver trabalho aqui, posso ficar mais um tempinho, mas a intenção é voltar para meu país — pontua Daniel.
— É uma obrigação inata da pessoa. Se você tem possibilidade de contribuir para a melhora de seu país, precisa fazer isso — complementa Salvador.
Da esq. para dir.: Eulanda, Asid, Daniel e Salvador
Nesse provável retorno à Africa, os fundadores do Afro Pub poderão compartilhar as experiências acumuladas do lado de cá do Atlântico, o que inclui a percepção de diferentes visões de mundo no contato não só com os brancos, mas também com os afrodescendentes brasileiros, como explica Eulanda:
— Os negros do Brasil perderam um pouco de sua identidade, até pela discriminação racial que sofrem até hoje. Há coisas que eles veem e sentem de uma forma e eu de outra. Sou uma negra de raiz, porque sei de onde venho. Certamente, a minha dor é menor. Isso torna um pouco diferente a forma de ser e perceber as coisas — diz ela.
Para que essa troca de vivências seja cada vez maior, estão todos convidados a conhecer o Afro Pub, um cantinho de africanos fora do Brasil, que está de portas abertas para todos os públicos, sem discriminação de qualquer espécie.
— É um lugar para se conectar com a gente mesma, mas também para fazer uma troca de experiências com afrodescendentes ou brancos do Brasil que queiram conhecer a nossa cultura. Tratamos todo mundo da mesma maneira. A ideia é acolher as pessoas e fazer com que se sintam em casa — conclui Asid.