Vida e obra do gaúcho vaqueano do rádio

Filme Darcy Fagundes, meu famoso pai desconhecido conta a história do primogênito da família Fagundes, que será homenageado nos festejos da Semana Farroupilha

Darcy Fagundes no estúdio da TV Piratini: documentário estreia no segundo semestre de 2025 (Fotos/Divulgação)

Os Fagundes constituem uma das famílias mais populares da música gaúcha.

Disso, ninguém duvida. O que pouca gente conhece, hoje em dia, é a história de quem deu início ao protagonismo do clã na cultura regional.

Estamos falando de Darcy Fagundes, primogênito de 11 irmãos, dentre eles, Antonio Augusto e Euclides, que ganharam fama, respectivamente, como Nico e Bagre Fagundes (a segunda geração também despontou na cena artística, principalmente Neto, Ernesto e Paulinho, filhos de Bagre).

Declamador, poeta e ator, Darcy foi o primeiro dos Fagundes a fazer sucesso, com o programa Grande Rodeio Coringa, na Rádio Farroupilha, de 1955 a 1970. Além da Farroupilha, trabalhou na Rádio Gaúcha e na TVE, entre outras emissoras.

Merecidamente, Darcy será homenageado durante os Festejos Farroupilhas, que – em 2025 – terão como tema Ondas Curtas Para Uma História Longa – O Centenário de Darcy Fagundes e os 70 Anos do Grande Rodeio Coringa. Além disso, terá sua história contada no documentário Darcy Fagundes, Meu Famoso Pai Desconhecido, dirigido por Luciane Fagundes (filha de Darcy). O filme está em fase de finalização.

O documentário foi assunto do podcast do Rua da Margem, quando o jornalista Paulo César Teixeira conversou com a diretora e o montador Rogério Brasil Ferrari (você pode escutar no Spotify ou no YouTube).

Calça de brim Coringa

Nascido em Uruguaiana, em 15 de dezembro de 1924, Darcy desembarcou em Porto Alegre, aos 15 anos, para estudar no Colégio IPA. Era sonho do pai, Euclides, que os filhos homens se formassem como advogados. Darcy foi o único da prole que não satisfez a vontade paterna.

Bem que tentou – chegou a cursar duas vezes a faculdade de Direito, mas desistiu no meio do caminho. Numa entrevista recuperada pela produção de Darcy Fagundes, Meu Famoso Pai Desconhecido, o artista pede desculpas ao pai por tê-lo desapontado.

Em 1955, ele fazia locuções comerciais na Farroupilha (a emissora de rádio mais popular no Sul do Brasil, à época), quando foi convidado para trabalhar como assistente de Paixão Côrtes, num programa sobre tradicionalismo. Entre outras tarefas, interpretava o personagem Peão Amigo.

Artista se destacou como declamador ao microfone

À certa altura, Darcy disse a Paixão que não se sentia confortável no papel e inventou a figura do Peão Vaqueano do Rádio. Mais do que um novo personagem, virou um bordão, que o acompanharia no resto da carreira.

— Vaqueano é o descobridor de caminhos, aquele que dá o rumo, o que Darcy fez durante toda a vida — diz Rogério, responsável pela montagem do documentário.

Depois que Paixão se afastou, o poeta e folclorista Dimas Costa assumiu o comando por breve período, antes que Darcy se firmasse como apresentador do Grande Rodeio Coringa.

Consta que o nome do show, que destacava a marca do patrocinador (as tradicionais calças de brim Coringa), foi sugestão de Darcy.

Ele não era somente o apresentador – a bem da verdade, era a principal atração do programa.

Como declamador, se apresentava acompanhado do músico Luiz Menezes, natural de Quaraí, autor de clássicos do cancioneiro gauchesco como Piazito Carreteiro. Essa dupla fez história no rádio.

O sucesso estrondoso do Grande Rodeio Coringa não era de surpreender.

Quando o programa foi criado, a exaltação das tradições gaúchas estava na pauta do dia. Oito anos antes, Paixão e Barbosa Lessa haviam fundado o movimento tradicionalista no Colégio Júlio de Castilhos.

Aquele era também o período do pós-guerra, que expandiu a influência dos Estados Unidos por todos os cantos do planeta, gerando reações contrárias. Não à toa, a valorização da identidade regional aparecia como um contraponto para o que se considerava uma invasão perniciosa da cultura norte-americana.

Afora isso, a televisão ainda não havia conquistado seu espaço no cotidiano dos brasileiros – para se ter ideia, o primeiro canal de TV do Rio Grande do Sul, a Piratini, só entrou no ar em 1959. Assim, as famílias tinham como hábito se reunir em volta dos aparelhos de rádio à válvula para escutar seus programas favoritos.

No ar das oito às dez horas da noite, Grande Rodeio Coringa era líder absoluto de audiência aos domingos.

No palco da Farroupilha, duplas gauchescas, trovadores e declamadores que vinham de rincões do interior do Estado concorriam a prêmios como fogão ou pacote de ervas. Ganhava quem arrancava mais palmas da plateia.

— Darcy trouxe a cultura regional para o ambiente urbano. O que era coisa da lida campeira, de pessoas reunidas ao redor de fogueiras, passou a ser transmitido por uma mídia de grande alcance — aponta Rogério.

Grandes artistas foram revelados no programa da Farroupilha, como Teixerinha e Mari Terezinha, Gaúcho da Fronteira, Os Mirins e Os Serranos, além de mestres da trova gaúcha, como Formiguinha e Gildo de Freitas.

Montado no cavalo de Teixeirinha, no filme Tropeiro Velho, de 1979

Darcy Fagundes também se sobressaiu como ator em filmes como Para, Pedro (direção de Pereira Dias, com José Mendes, em 1969) e O Negrinho do Pastoreio (dirigido por Nico Fagundes, com participação de Grande Otelo, em 1973).

Marcou presença ainda nos filmes protagonizados por Teixeirinha, que eram campeões de bilheteria, a exemplo de Pobre João, de 1975, e Tropeiro Velho, de 1979.

Há que se ressaltar que, no cinema, não fez só personagens gauchescos, mas também tipos comuns, como o padre de A Morte Não Marca Tempo, de 1975.

Ele morreu aos 59 anos, em 22 de junho de 1984, vítima de câncer.

Engana-se quem pensa que Darcy Fagundes, Meu Famoso Pai Desconhecido seja um documentário apenas laudatório, daqueles que se contenta em elogiar o protagonista.

— O filme não se esquiva de abordar os tormentos e as contradições do artista, que não constituem demérito, mas só engrandecem o personagem — diz Rogério.

Acerto de contas

Além de reconstituir a trajetória de Darcy, o documentário busca também uma reconciliação da diretora com as memórias de um pai ausente. Neste sentido, é quase um acerto de contas de Luciane com a sua própria biografia.

Ela perdeu a mãe (Therezinha) cedo, aos oito anos de idade, e se viu obrigada a cuidar das irmãs menores (Mocita e Ana) praticamente sozinha, já que Darcy mal dava conta das atribuições familiares, em função da vida boêmia e dos compromissos profissionais.

— Durante muito tempo, me afastei da figura paterna e até negava a importância artística dele. Era como se precisasse não admirar para não gostar. Filmar a história do Darcy me ajudou não só a redescobrir o artista, mas a compreender aquele ser humano e suas circunstâncias, que não eram fáceis. Claro que tudo isso às custas de muita terapia — conta ela.

A ideia inicial de Luciane era escrever um livro.

Jornalista com passagem pela TV Assembleia, ela cogitou, em certo momento, trabalhar com audiovisual, pensamento que se fortaleceu a partir da vontade de agregar colaboradores ao projeto.

— Sou de juntar gente — explica a diretora.

Na mudança de rumo, foi essencial a sugestão de Ivo Czamanski, figura histórica do cinema gaúcho, que foi diretor de fotografia em mais de 300 produções ao longo de seis décadas.

— Quem sabe fazemos um filme? — propôs ele.

´Rogério Ferrari, Luciane Fagundes e Antonio Czamanski no pré-lançamento no Auditório Luíiz Cosme, na Casa de Cultura Mario Quintana, em dezembro

Ivo (que foi um dos entrevistados) faleceu em 2023, aos 81 anos, em meio às filmagens de Darcy Fagundes, Meu Famoso Pai Desconhecido. O filho dele, Antonio Czamanski, é produtor do documentário, que conta ainda com Eduardo Izquierdo na direção de fotografia.

Com o andar da carruagem, o que era, a princípio, um curta-metragem para exibição doméstica junto a familiares se transformou num longa de 90 minutos de duração para ganhar o mundo.

Foram gravados depoimentos de cerca de 20 pessoas, que conviveram com Darcy ou vivenciaram a época de ouro do Grande Rodeio Coringa.

No começo de junho, a equipe concluiu a filmagem com locações em Uruguaiana. Antes, havia colhido o testemunho do músico Aldo Fagundes, também filho de Darcy, em Brasília. As demais entrevistas aconteceram em Porto Alegre.

A reprodução de áudios se baseia nos discos lançados por Darcy – o primeiro LP, Tropa Amarga, data de 1968 –, que reproduziam trechos do programa de rádio gravados ao vivo. Já o registro de imagens se vale, principalmente, de filmes e do programa de televisão que ele apresentou na TVE, na década de 1980, cedidos pela emissora estatal.

Em 15 de dezembro do ano passado, data do centenário de Darcy, uma amostra de 20 minutos foi exibida para convidados no Auditório Luiz Cosme, da Casa de Cultura Mario Quintana.

A estreia do longa-metragem está prevista para o segundo semestre deste ano, com exibição em salas de cinema e circuitos de festivais destinados a documentários.