Não era pra tocar no rádio, mas tocou
Figura central da cena musical de Porto Alegre, Jimi Joe lança livro (com Cristiane marçal) para contar a história das rádios Continental 1120 AM e Ipanema FM
Paulo César Teixeira
Jimi Joe: 50 anos na estrada da música (Fotos/Juliana Franzon)
Conheci Jimi Joe na virada dos anos 1970 para os 1980.
Ele andava de motocicleta e usava casaco de couro (a jaqueta, talvez, seja um retoque da memória, requentada no vácuo do tempo).
Alguém poderá dizer que a aparência era a de um sujeito duro na queda, mas não. Desde sempre, combinava o ar rebelde com a delicadeza e a simplicidade dos caras de coração puro e selvagem. Jimi é o que, antigamente, se dizia um homem de caráter, na acepção da palavra. Palavra certa, direta. Gestos simples e sem culpa. Uma pessoa absolutamente confiável.
Nesta época, ele circulava na noite com uma galera de anarquistas ou anarco-sindicalistas, tal como aqueles moços se apresentavam ao público. Inimigos do rei.
Um deles, Helios Puig, morava no edifício Minerva, na Rua Sarmento Leite, num ponto que ficou conhecido na história de Porto Alegre como Esquina Maldita. Ali se reunia a fauna maluca da cidade. Foi, por sinal, no apartamento do Puig que escutei, pela primeira vez, Tom Zé, num compacto duplo que rodava na vitrola. “Se o caso é chorar, te faço chorar/Se o caso é sofrer, eu posso morrer de amor”.
Essas recordações me vieram à mente enquanto subia as escadas do bar Ocidente, na quinta-feira, 3 de julho. Lá em cima, Jimi reunia amigos de longa data para celebrar o lançamento do livro Essa Não É Pra Tocar No Rádio, que ele escreveu a quatro mãos com Cristiane Marçal.
Antena Pré-internet
Jimi e Cristiane Marçal: a história do rádio alternativo de Porto Alegre contada a quatro mãos
Quando não existia internet, quem quisesse conhecer o que havia de novidade na música popular do planeta só tinha uma opção: ligar o rádio.
Em Porto Alegre, duas emissoras foram responsáveis pela formação musical dos jovens nas últimas décadas do século passado: a Continental 1120 AM e a Ipanema FM. Os prefixos se destacavam não só por uma programação musical alheia aos padrões comerciais, mas também pela linguagem coloquial e irreverente de locutores e apresentadores, em contraste com o estilo formal e sisudo que imperava no dial.
Mais do que isso, ambas ajudaram a construir a cena da música urbana de Porto Alegre, a partir dos anos 1970 e 1980.
Outra coincidência é que, por ironia, a Continental e a Ipanema se moldavam a um paradoxo: apesar do formato inovador, pertenciam a grandes conglomerados da comunicação – a Continental fazia parte do Sistema Globo de Rádio e a Ipanema, da Rede Bandeirantes de Rádio.
Na linha do tempo, elas se revezaram na preferência do público jovem mais descolado. A Continental brilhou entre 1971 e 1981, ao passo que a Ipanema assumiu o bastão em 1983 e perdurou até 2015 (com o auge nas décadas de 1980 e 1990).
Agora, a história das duas emissoras de perfil alternativo da capital gaúcha pode ser conferida no livro Essa Não Era Pra Tocar No Rádioa, de Jimi Joe e Cristiane Marçal (o título é uma brincadeira com a canção Essa É Pra Tocar no Rádio, de Gilberto Gil, de 1975). O lançamento é da Brasa Editora.
Figura de frente da cena musical independente de Porto Alegre, além de jornalista com extensa trajetória na mídia do RS e de SP, Jimi é mais do que um narrador. Ele é personagem central da história que está sendo contada.
Rolinho e fita k7
Com Wander Wildner e Biba Meira no palco (Foto/Eduardo Aigner)
Canceriano de 7 de julho, nascido em Arroio Grande, em 1955, o canhoto Jimi Joe (cujo nome de batismo é Arzelindo Ferreira Neto) está na estrada da música desde os 20 anos de idade.
Foi um dos criadores da Atahualpa Y Us Panquis, banda que costurou, de modo particular e intransferível, influências múltiplas de pop, punk rock, música serialista e atonalismos, sob a batuta de Carlos Eduardo Miranda, o Gordo Miranda, nos anos 1980.
Além disso, Jimi fez parte da Expresso Oriente, de Júlio Reny, e teve participação em grupos icônicos do rock gaúcho, como Justine, Os The Darma Lóvers, Os Daltons e A Lavanderia Psicodélica de Charlie Chan.
Tudo isso sem falar na constante e profícua parceria com Wander Wildner.
— Jimi sempre foi o homem forte da minha banda. Eu não sou músico, sou um ator ou um contador de histórias. Ele é um músico excepcional, que transformou as crônicas que escrevi em coisas bonitas de se ouvir. Como se fosse pouco, foi quem me mostrou o Tao Te Ching — diz Wander.
Nessa longa caminhada, Jimi lançou dois discos solo - Saudades do Futuro, de 2005, e Nenhum Dano Mental Grave Constatado, de 2017. É o autor de Sandina, um dos clássicos do rock gaúcho.
A atração pelo jornalismo - e pelo rádio, em particular - é tão antiga quanto a paixão pela música.
Ela remete à infância, em Pelotas, quando escutou, em 1963, a notícia do assassinato do presidente americano John Kennedy, em Dallas.
— Minha irmã era apaixonada por Kennedy. Ficou dez dias praticamente em jejum de tão abalada — conta ele.
Anos depois, Jimi passou a fazer parte da história do rádio.
Numa noite do final da década de 1970 (época em que ele dedilhava a sua guitarra nas Rodas de Som, comandadas por Carlinho Hartlieb, no Teatro de Arena), a cantora Élbia Solange bateu à porta do apartamento de Jimi para lhe fazer um pedido.
Ela tinha sido convidada a gravar no estúdio da Continental. Mas havia um problema: precisava cantar um repertório autoral, e não dos Beatles ou de outras bandas consagradas do universo pop, como estava habituada a fazer em bares e teatros.
— Tu me empresta duas músicas tuas, Jimi?
Foi assim que, pela primeira vez, uma canção de Jimi flutuou pelas ondas do rádio. Alíás, foram duas: Regresso e Mortos Vivos, que entraram na programação da 1120 AM (com ele ao violão e Élbia nos vocais).
Já na Ipanema FM, a história de Jimi se fez do outro lado do balcão.
Entre idas e vindas, exerceu múltiplas funções, como redação, locução e produção executiva. Com o crachá de produtor executivo, durante certo tempo, foi responsável, junto com Júlio Reny, pela seleção de bandas locais que passariam a ser veiculadas pela emissora.
— A rapaziada vinha com rolinho e fita k7 para divulgar as músicas — relembra ele.
Memória de ouro
A ideia original de Essa Não Era Pra Tocar No Rádio remonta ao TCC escrito por Cristiane Marçal em 2008, ao se formar em Jornalismo pela Unisinos. Na época, ela mostrou o trabalho acadêmico a Jimi e pediu a ele que fizesse uma revisão do texto.
— Não tem nada errado no TCC. Só tem uma coisa: acho que deve virar um livro — respondeu Jimi.
A sugestão demorou quase 20 anos até virar realidade, com apoio do Fumproarte.
Capa do livro lançado pela Brasa Editora
Na primeira parte do livro de 208 páginas, o texto do TCC é apimentado com a pena (e a vivência) de Jimi. Na segunda metade, aparecem os depoimentos de personagens que trabalharam na Continental, como Júlio Fürst, e na Ipanema, como Nilton Fernandes, Mauro Borba, Katia Suman, Mary Mezzari (falecida em 2015) e Eduardo Santos.
— Eu tinha ido atrás de histórias que não vivi. Já o Jimi estava presente em todas elas, e isso faz uma diferença imensa, ainda mais porque ele tem uma memória de ouro. Jimi tirou o academicismo do texto original e agregou informações de forma mais empírica — relata Cristiane.
Na noite do lançamento, Jimi sentou-se junto à mesa preparada para os autógrafos, ao lado de Cristiane, num canto do bar.
Fazia-lhes companhia o mestre de cerimônia do evento, Mauro Borba, outro personagem da história contada no livro, assim como os artistas que, em seguida, subiriam ao palco para pocket shows - Nelson Coelho de Castro, Nei Lisboa, Wander e a banda Replicante Apaixonado, projeto de Carlos Gerbase, um dos fundadores dos Replicantes.
O posicionamento distante do palco se justificava, em parte, pela saúde frágil de Jimi. As 24 anos, ao sofrer um acidente de moto, ele soubera que tinha rins policísticos, doença genética que, duas décadas depois, interrompeu sua função renal. Foram 10 anos em hemodiálise, até receber o transplante, em 2013.
Mas era também um retrato da postura de vida do anfitrião, avesso a estrelismos e badalações, como convém a um velho anarquista.
— Talentoso e solidário, Jimi respeitou estilos e nunca ditou regras. Certa vez, um músico perguntou pra ele como deveria tocar determinado trecho de uma canção do Atahualpa Y Us Punquis e ouviu a seguinte resposta: “Toca do jeito que quiser, porra!” É isso aí, Jimi! Antes de tudo, é preciso ser livre pra fazer como se gosta — sintetiza Carlos Gerbase.