Histórias de vida atravessadas pela estrada que reparte uma cidade ao meio
Documentário “Um Filme de BR” mostra como a BR-116 impacta o cotidiano dos moradores de Canoas
Longa-metragem de Wender Zanon estreia no sábado, dia 27 de setembro, no Festival de Cinema de Canoas (Fotos/Jéssica Nakaema e Marcelo Leitão/Divulgação)
A BR-116 é a maior rodovia do Brasil.
Com mais de 4,5 mil km de extensão, ela percorre o país de norte a sul, cruzando dez estados brasileiros, desde Fortaleza, no Ceará, até chegar a Jaguarão, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai.
Em muitas localidades, a estrada risca o mapa dos municípios como uma lâmina, repartindo o território em duas metades e impactando a vida dos habitantes como marcas de pneus no asfalto.
É o caso de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, cidade de 360 mil habitantes colada à capital gaúcha.
Um Filme de BR, documentário dirigido pelo canoense Wender Zanon, de 35 anos, mostra histórias de vida contadas por personagens que convivem diariamente com a rodovia. O filme será lançado no sábado, dia 27 de setembro, às 5 da tarde, no Sesc Canoas, como parte da programação do Festival de Cinema de Canoas. Depois, em 8 de outubro, poderá ser visto na tela da Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, às sete da noite.
Avião na praça
Um Filme de BR conclui a trilogia do diretor dedicada às transformações urbanas que atingiram a cidade em que nasceu nas últimas décadas.
Em This Is Canoas, Not Poa (disponível no YouTube), de 2021, Zanon reconstituiu 40 anos da história do rock em Canoas. com ênfase em eventos e lugares que serviram de pontos de aglutinação da cena roqueira.
— Esse trabalho mostra como diferentes gerações de músicos abriram espaços para afirmar sua identidade cultural frente à dominação simbólica exercida pela capital.
Quando finalizou This Is Canoas, Not Poa, Zanon já tinha ideias para dar continuidade à trilogia, mas preferiu maturá-las numa espécie de exercício de “ócio criativo” até que elas estivessem prontas para execução.
Ensaios Sobre Uma Cidade veio à tona em 2022, tendo como eixo da narrativa o monumento do Avião — talvez, o principal símbolo de Canoas. Para quem passa pela BR-116, o modelo Gloster Meteor F-8, de fabricação inglesa, dá a impressão de estar suspenso no ar.
Praça do Avião em foto da edição de janeiro de 1968 do jornal O Timoneiro
Na verdade, encontra-se assentado sobre um pedestal na Praça Alberto Santos Dumont (popularmente conhecida como Praça do Avião), desde janeiro de 1968.
Mais do que um cartão-postal, o monumento exalta a herança militar do município, que é sede da Base Aérea de Canoas (BACO) e do Comando Aéreo Sul (V COMAR).
— As pessoas não se dão conta de que é um símbolo político instalado na abertura dos chamados anos de chumbo da ditadura militar. O filme questiona tanto a centralidade do avião na representação da cidade quanto os processos de militarização associados a ele — afirma o diretor.
Fratura urbana
Já em Um Filme de BR, a estrada é protagonista
É ela que, ao abrir uma fratura no coração da cidade, desenha um retrato da Canoas contemporânea — uma cidade que preserva memórias e, ao mesmo tempo, se reinventa para sobreviver a novos processos de segregação e gentrificação.
Só que, em vez de centrar o foco nos motoristas e em seus automóveis (afinal, a razão de ser da rodovia), os realizadores buscaram registrar as histórias de vida de quem caminha às margens da BR, que ruge dia e noite.
Para isso, durante dois meses, quatro integrantes da equipe liderada por Zanon se alternaram em caminhadas pelas calçadas, com uma câmera na mão. Ao longo do percurso, entrevistaram 17 personagens, os quais descreveram memórias e experiências – na maioria das vezes – invisíveis para quem trafega pela BR 116 ao volante.
— Os depoimentos evidenciam uma ambivalência entre o ritmo acelerado do trânsito e o cotidiano mais lento das comunidades locais. As histórias trazem dualidades profundamente humanas. Viver é se expor, e nem sempre as coisas acontecem como planejado, mas está tudo bem — anota Zanon.
Além disso, o documentário revela ângulos e perspectivas visuais pouco conhecidos da estrada encravada dentro da cidade.
— Há coisas que você só percebe caminhando, o que é curioso, já que a BR foi projetada para atender aos automóveis. Neste sentido, o filme descontrói a ideia que se tem de uma rodovia — acrescenta ele.
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Antes de filmar, a equipe pesquisou referências à BR-116 em jornais locais e arquivos de instituições públicas. Afora isso, o professor de Geografia, Luiz Fernando Mazzini Fontoura, da UFRGS, autor de livros como O Gaúcho e Seu Modo de Vida, prestou consultoria.
Os cineastas participaram ainda de uma “sala de deriva” com Lúcia Marques Xavier, fotógrafa e mestre em História da Arte pela Universidade Nova de Lisboa, que – por sinal – também participa do filme.
Do ponto de vista da concepção, Zanon presta homenagem a Eduardo Coutinho (falecido em 2014, aos 80 anos), apontado como o maior documentarista da história do cinema nacional.
Assim como, em Edifício Master (longa-metragem de 2002), Coutinho registrou o cotidiano dos moradores de um condomínio do bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, Um Filme de BR busca mapear a rodovia e seus personagens.
O filme foi financiado com recursos da Lei Paulo Gustavo e contou com apoio do Arquivo Histórico de Canoas e da Biblioteca Pública Municipal.