A galera do Garibas está órfã

Morre Neusa Tormes, dona do Bar GaRibaldi, pé-sujo que marcou território na Cidade Baixa, bairro boêmio de Porto Alegre

Noite agitada no bar defronte à Praça Garibaldi, frequentado por universitários, ativistas da diversidade sexual e entusiastas das bikes, que encerrou atividades em maio de 2017

Noite agitada no bar defronte à Praça Garibaldi, frequentado por universitários, ativistas da diversidade sexual e entusiastas das bikes, que encerrou atividades em maio de 2017

Por mais de duas décadas, o Bar Garibaldi foi um dos poucos botecos a deixar as portas abertas até quase o raiar do dia na Cidade Baixa, o bairro mais boêmio de Porto Alegre. Como autêntico “pé-sujo”, atraia um público fiel e eclético graças aos preços acessíveis e ao ambiente despojado e acolhedor.

É verdade que o Garibas, apelido que ganhou dos clientes, já tinha encerrado as atividades em maio de 2017, mas na última terça-feira, 25/5, a galera que se habituara a frequentá-lo ficou órfã pela segunda vez com a morte repentina da dona do bar, Neusa Tormes, aos 58 anos.

Neusa não era uma dona de bar qualquer, de jeito nenhum. A princípio, ela cativou boêmios à moda antiga, apreciadores do clássico martelinho a qualquer hora do dia.

Imagem de capa do perfil do Bar Garibaldi no Facebook: sem discriminação

Imagem de capa do perfil do Bar Garibaldi no Facebook: sem discriminação

Nos últimos tempos, havia conquistado o coração de uma juventude formada por universitários, ativistas da diversidade sexual e adeptos de bikes como modelo de mobilidade urbana, entre outros grupos alternativos.

A cada madrugada, em meio à balbúrdia da multiplicidade de faunas urbanas que confraternizavam (ou não) do outro lado do balcão, a Tia – como era carinhosamente chamada pelos frequentadores – controlava o ambiente com firmeza e discrição.

Por mais eufóricos que estivessem, os fregueses a obedeciam. Talvez porque ela contasse com a silenciosa autoridade conferida aos donos de botecos que não discriminam clientes pela classe social, a cor da pele ou a orientação sexual.

As paredes do Garibaldi expunham essa cumplicidade entre Neusa e a turma que ali batia ponto. Desenhos, fotografias e cartazes de eventos da agenda cultural da cidade, deixados pelos clientes, formavam um mural multifacetado, uma obra coletiva em permanente gestação.

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Por isso, nas paredes do Bar Garibaldi, não existiam distâncias. Ao menos quando se mirava o rosto da Nega Lu (negro homossexual que protagonizou a cena boêmia e cultural de Porto Alegre entre as décadas de 1970 e 1990), postado a poucos centímetros da Torre Eiffel. Heróis rebeldes da cultura pop, como Che Guevara e Bob Marley, também espiavam o alvoroço de cada madrugada, a exemplo de figuras anônimas.

— A moça de cabelo vermelho foi o Ângelo que fez — dizia Neusa, apontando para a pintura na parede, produzida por um cliente.

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Quem puxasse conversa no balcão também poderia escutar histórias remotas, que vinham do passado longínquo do bar, período anterior à gestão de Neusa. Apesar de torcer pelo Internacional, ela contava orgulhosa que o hino do Grêmio teria sido composto numa das mesas do Garibaldi, nos anos 1950, por Lupicinio Rodrigues.

— Não posso te afirmar com certeza, mas foi o que me falaram.

Nem precisava ser verdade. A aura do Garibaldi permitia que se visualizasse o maior compositor de música popular do Sul do Brasil sentado numa mesa do Garibaldi, compondo a estrofe “Até a pé nós iremos”, em meio a uma greve de bondes.

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Nascida em Tucunduva, na região noroeste do RS, Neusa chegou a empunhar enxada para ajudar a família a cuidar da roça. Morava em Ijuí quando, em meados dos anos 1990, resolveu se mudar para Porto Alegre, ao lado de Nebusaradan Ritter, o Dãe, com quem estava casada à época, já com a intenção de tomar conta do bar na Cidade Baixa.

Quando o casal se separou, Neusa optou por cuidar sozinha do bar, morando no andar de cima do sobrado junto à Praça Garibaldi. Em maio de 2017, abriu mão do ponto, locando o espaço para que ali passasse a funcionar uma lanchonete.

Neusa (à dir.) e a irmã Teresinha Ribeiro (Foto/Facebook)

Neusa (à dir.) e a irmã Teresinha Ribeiro (Foto/Facebook)

A essa altura, tinha dores crônicas na coluna, provavelmente em consequência de tantas noites que varou de pé, atrás do balcão. Queria também descansar a cabeça.

O desgaste não se dava pelo convívio com a galera que habitava o boteco, e sim pela perseguição da ala conservadora da sociedade, que não lhe dava trégua.

Em 2014, por exemplo, após receber uma das tantas notificações da prefeitura motivadas por queixas da vizinhança (esta, em particular, lhe atribuía injustamente a responsabilidade por churrascos e pagodes na calçada), Neusa desabafou no Facebook: “No fundo, querem privar as pessoas de saírem à hora que bem entenderem e, assim, acabar com a vida noturna na cidade, porque a criminalidade mesmo não é combatida. Nós só estamos trabalhando e também precisamos viver. NÃO PASSARÃO”.

O tom de indignação não era usual, o que dá a medida do sentimento de injustiça que lhe acometia. No mais das vezes, Neusa tinha um semblante sereno e não perdia a doçura, até onde a timidez permitia. Ela partiu em silêncio, do jeito dela – morreu de um mal súbito enquanto dormia.

Ficamos nós aqui, cheios de saudade, atentos a uma citação de Simone de Beauvoir, que Neusa postou recentemente no Facebook: “Que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre”.