Gente da noite

Com passagens por bares que marcaram época, Guto cativa há 20 anos a boemia de porto alegre com doses de simpatia e eficiência

Como garçom ou gerente, Guto trabalhou em botequins famosos como Ritrovo, Pier 174, Entreato e Bar do Nito, onde está hoje (Fotos/Arquivo pessoal)

Como garçom ou gerente, Guto trabalhou em botequins famosos como Ritrovo, Pier 174, Entreato e Bar do Nito, onde está hoje (Fotos/Arquivo pessoal)

Pequenino, ele se move como uma usina de alegria e empatia há mais de duas décadas pela noite de Porto Alegre.

Desde o Ritrovo e o Pier 174, cafés pioneiros da calçada da Rua da República, na Cidade Baixa, passando pelo inesquecível Entreato, até o lendário Bar do Nito, no Moinhos de Vento, no qual atualmente exerce a gerência, César Augusto Peixoto da Silveira, o Guto, de 50 anos, só trabalhou em bares que marcaram época na boemia da Capital.

Natural de Santa Maria, ele se mudou aos quatro anos de idade para Porto Alegre, mais precisamente para o Menino Deus, bairro que nunca abandonou, ainda que tenha trocado algumas vezes de endereço e até curtido um ligeiro exílio voluntário nas areias escaldantes do Nordeste brasileiro.

A trajetória profissional iniciou aos 18 anos em família, no restaurante do tio Eduardo, na Rua Veador Porto, no bairro Santana. No início, era um acanhado refeitório, com cerca de 15 mesas, que servia comida caseira aos clientes da vizinhança. Depois, passou a fornecer refeições industriais para empresas de grande porte, como a metalúrgica Natalino Tomasi, de Viamão, que, na época, contava com mais de uma centena de funcionários.

No restaurante do tio, Guto aprendeu segredos e macetes da profissão. Uma dezena de anos depois, ele se sentiu encorajado a seguir carreira solo ao assumir o bar do Iate Clube Guaíba, sob regime de economato, para atender apenas a eventos à noite. Digamos que, àquela altura, já havia descoberto a vocação boêmia.

Em 2001, se desfez do negócio à beira do Guaíba para viver um ano e meio em Maceió (AL). Com saudades de uma namorada, em janeiro de 2002 já estava de volta a Porto Alegre para se integrar à equipe do Ritrovo, do comparsa Nico Esteves, que conhecia das rodas do Menino Deus.

— O Nico tinha se desligado da CRT (Companhia Riograndense de Telecomunicações) para virar dono de boteco e me convidou para trabalhar com ele. Não pensei duas vezes — relata Guto.

Apesar de também gostar das funções administrativas, Guto não abre mão do contato direto com os clientes

Apesar de também gostar das funções administrativas, Guto não abre mão do contato direto com os clientes

O Ritrovo foi um primeiros cafés a ocupar a Rua da República, nas proximidades da esquina com a Lima e Silva, região atualmente apontada como uma espécie de “centrinho” da Cidade Baixa, área boêmia de Porto Alegre.

Ali perto, ficava o Café Antártico, adquirido pouco tempo depois pelo casal Bel e Val para se transformar no Pier 174, um dos primeiros points LGBTQIA+ da calçada que, nos anos seguintes, viria a ser uma das principais referências da diversidade sexual na Capital.

Após dois anos no Ritrovo, Guto saltou para o bar das gurias, a bem da verdade, uma garagem adaptada com mesas ao ar livre – o vizinho colaborava para ampliar a área disponível ao ceder espaço em frente à residência dele. Além da galera LGBTQIA+, o Pier 174 era frequentado por figuras ilustres da cena cultural, como o cantor e compositor Nei Lisboa, um dos clientes mais assíduos, que jogava âncora por ali no início da noite numa mesa especialmente reservada para ele pelas proprietárias.

Das lembranças do barzinho da República, Guto guarda principalmente a boa organização da casa, que tinha metas de vendas diárias, na maior parte das vezes, plenamente atingidas pela equipe de trabalho.

— Havia regras rígidas, como o horário do último pedido da cozinha, às 15 para as 11. A saideira vinha logo em seguida. Não tinha arrego, e o público se educou, aceitando numa boa — conta Guto.  

Em setembro de 2005, Guto atravessou a pista da República e aderiu ao Entreato, que tinha sido inaugurado em abril daquele ano por três amigos – o fotógrafo Igor Sperotto, que Guto conhecia como cliente do Ritrovo; o ator Fernando Waschburger, hoje dono do Bar do Nito; e o dramaturgo Artur Pinto, autor de comédias musicais de sucesso como Homens de Perto e Inimigas Íntimas.

Mais uma vez, Guto participava de uma experiência relevante na noite da Capital: o Entreato faz parte da primeira leva de bares com música ao vivo na cena boêmia contemporânea da Cidade Baixa.

— O Alexandre Poeta (cantor e pianista) apresentava jazz às terças-feiras e a Sil Hendges cantava aos domingos. De uma hora para a outra, a coisa virou um boom. Chegava a juntar plateia de até 300 pessoas em cada espetáculo — relembra Guto.

No Entreato, Guto teve a oportunidade de exercer, pela primeira vez, a gerência de um estabelecimento noturno, junto com Cláudia Teixeira, com quem se revezava na gestão de pessoal e nas operações de compras. Desde a experiência lá atrás com o tio Eduardo, ele sempre gostou de se envolver com tarefas de administração, embora até hoje não tenha perdido o “cacoete” de atender diretamente aos clientes.

— Gosto de me comunicar com as pessoas, fazer um agrado na mesa, É também uma maneira de sentir se tudo está funcionando bem — confidencia.

No palco do Bar do Nito, que apresenta shows de MPB, saraus e espetáculos de teatro em agitada agenda cultural

No palco do Bar do Nito, que apresenta shows de MPB, saraus e espetáculos de teatro em agitada agenda cultural

Há quase sete anos, Guto assumiu a gerência do Bar do Nito. O botequim da Rua Lucas de Oliveira adquiriu fama nas décadas de 1990 e 2000 nas mãos do violonista Nerci Padilha, o Nito, que há algum tempo passou as rédeas do negócio para Fernando Waschburger, ex-dono do Entreato. Nito ainda marca presença no palco do boteco, com shows de voz e violão. O bar também promove saraus e espetáculos de teatro, honrando a trajetória cênica do atual proprietário.

Com a larga experiência adquirida, Guto é a pessoa indicada para citar os principais atributos para se trabalhar à noite:

— Precisa ter comunicação, ser pró-ativo e manter a cabeça fria, principalmente nas horas críticas.

Com o tempo, ele adquiriu algumas técnicas para neutralizar fregueses agressivos ou inconvenientes. Uma delas é repetir as palavras fora de propósito que o sujeito dispara, quando perde o controle por conta do efeito etílico.

— Eu repito para que a pessoa ouça os absurdos que está dizendo. Às vezes funciona, outras não — admite. Em seguida, acrescenta: — Seja como for, não dá para perder de vista que um bar não é ferragem ou mercearia, por isso, a relação com o cliente é diferenciada. É preciso ter empatia com as pessoas. Se entrar com ponta de faca, não vai dar certo.

Nada disso vai dar bom resultado se a criatura não curtir a noite. Além de fonte de subsistência, a boemia sempre foi alvo de diversão para Guto. Aliás, no velho Ritrovo, a certa altura da noite, diante da insistência do público em não arredar pé, ele sabia como resolver o impasse. Não foram poucas as vezes que retirou o avental e convidou os clientes para perambular junto com ele por outros bares, que ficavam de portas abertas madrugada adentro.

— Era o único jeito de fechar o bar — conta Guto, com ar divertido.

Por essas e outras, Guto cativa o público boêmio de Porto Alegre há tanto tempo, sempre com altas doses de simpatia e camaradagem.