A canção inacabada de Alex Vaz, músico pelotense que encantou a Cidade Baixa
Artista morreu prematuramente no dia 8 de agosto, deixando consternado o bairro boêmio de Porto Alegre
No making of do clipe De Volta pra Casa, de 2017, em Pelotas (Foto/Dani Ortiz)
Era uma noite fria de um inverno cavernoso.
Um clima de desolação tomava conta das calçadas da Cidade Baixa, reduto boêmio de Porto Alegre. Boa parte dos bares sequer abriu as portas, em sinal de luto. Nos poucos que estavam abertos, as pessoas se aglomeravam para espantar o ar gelado e repartir o sentimento de surpresa e desconsolo.
O bairro havia amanhecido (em 8 de agosto passado) com a notícia da morte do músico pelotense Alex Vaz, aos 38 anos, causada por um infarto fulminante.
— A morte nunca chega em boa hora. Mas, quando vem de forma inesperada, é como se a vida desse uma rasteira na gente — diz o músico e produtor Protásio Jr., um dos parceiros mais constantes na trajetória profissional de Alex.
Não foi difícil explicar a comoção. Alex era um dos personagens mais cativantes da cena noturna da Cidade Baixa nos últimos tempos (e também do eixo cultural que interliga a Capital à Zona Sul do Estado).
— Era fácil de admirar e gostar do Alex, uma das pessoas mais generosas e gentis que conheci — diz a produtora de figurinos Luíse Renon, namorada com quem ele compartilhou seus últimos meses, dias e horas de vida.
Conector de pessoas
Em agosto de 2023, Luíse foi apresentada ao músico por uma amiga que, a bem da verdade, acabara de conhecê-lo ali mesmo, na Travessa dos Venezianos, epicentro do bairro boêmio.
De óculos amarelos, com um sorriso aberto no rosto e uma taça de Fernet nas mãos, Alex era um sujeito capaz de conquistar amigos com menos de cinco minutos de conversa, como relata a jornalista Ziza Rabelo.
Tinha assunto com todo mundo e, além disso, gostava de juntar gente ao seu redor. Uma das missões a que se dedicava na Terra com esmero era, justamente, reunir pessoas.
Alex: um gênio na arte de preservar os laços de amizade
Para isso, descobria afinidades improváveis entre elas, de tal modo que. ao apresentar umas às outras, novas amizades já nasciam com laços fortes (fazia isso também nas atividades profissionais ao inventar projetos que mesclavam diferentes áreas da produção artística, como música, cinema, teatro, circo etc.).
— Era um conector de pessoas e posso dizer que, na maioria das vezes, não estava errado no feeling da conexão que construía entre elas — assegura Luíse.
Dono de uma sinceridade desconcertante, também sabia ser ranzinza na dose certa para chamar atenção. Às vezes, fazia isso só para fomentar um diálogo ou espichar uma conversa.
— Trazia uma coisa verdadeira, que encantava as pessoas — comenta a cantora Gabi Lamas.
Outra característica peculiar era não permitir que os amigos perdessem o contato, mesmo quando a vida os levasse para longe, envolvidos em outros afazeres ou geografias.
— Não te deixava desgarrar e sumir de vista. Era um gênio na arte de manter amigos — constata Ziza.
Isso foi confirmado no velório, quando várias pessoas revelaram que haviam trocado mensagens ou conversado com ele na véspera ou poucos dias antes de sua morte.
— Pessoas que conheciam o Alex há pouco tempo ou anos atrás tinham algo em comum: haviam trocado ideias com ele recentemente — assinala Ziza.
O sepultamento teve lugar no Cemitério São Francisco Paula, em Pelotas, sendo acompanhado por perto de uma centena de pessoas. Algumas vieram de terras distantes. Essas não se intimidaram com os obstáculos que atormentam a logística do tráfego aéreo no Rio Grande do Sul desde a enchente de maio de 2024.
Com Gabi Lamas, no Hermenegildo, em cena do curta Milonga Lejana
Gabi, por exemplo, veio de Brasília:
— Juntei todas as economias dos cheques especiais da vida. Precisava abraçar as pessoas que conviveram com ele. Se não tivesse vindo, ficaria com a sensação de que, a qualquer momento, o Alex bateria à porta aqui de casa — diz ela.
Essa capacidade artesanal de preservar vínculos de amizade se desdobrava em gestos de solidariedade, fosse por motivos nobres ou triviais.
No caso da jornalista Luiza Castro, Alex estava preocupado em ajudá-la a escolher um novo modelo de celular. Já com Pepe Martini, dono do bar Milonga, da Travessa dos Venezianos, a conversa foi outra na véspera do falecimento:
— Ele indicou uma guria que botava fé para trabalhar aqui no bar. Ao mesmo tempo, pediu o contato de outra amiga nossa, que produz vinho artesanal. Queria comprar para apoiar. A coisa da colaboração era uma constante nele — explica Pepe.
Canastra Suja
Nascido em 22 de novembro de 1985, Alex era filho do também músico Dija Vaz, bastante conhecido na cena musical de Pelotas desde a década de 1980.
A marca do atrevimento se fez presente desde o começo da carreira musical de Alex. Tanto que, no início dos anos 2000, a primeira banda da qual fez parte, Rosa Selvagem, se apresentava como “a melhor banda de hard rock de Pelotas” em cartazes colados nos muros da cidade. Quando olharam aquilo, os roqueiros mais experientes reagiram, perplexos:
— Quem são esses piás?
Canastra Suja (Protásio, Alex, Alércio e André), em 2006
Mas a banda que abriu mesmo os caminhos da cena roqueira do Sul do Estado para Alex foi a Canastra Suja, criada em 2006.
Em sua formação original, era constituída também por André Barbachan (guitarra) e Protásio Jr. (bateria e teclado). Ainda em 2006, o baixista Alércio Pereira Jr., então com 16 anos de idade, assumiu o contrabaixo (mais tarde, Marcelo Gafanha e Vini Albernaz também participariam do grupo).
No embalo, os rapazes da Canastra Suja passaram a morar juntos para viver a essência do que é ser uma banda de rock:
— O lance era dividir a vida, acreditar no sonho — relata Protásio.
A proposta era tocar blues e rocks clássicos, embora nenhum deles soubesse cantar direito. Alex foi escolhido vocalista por ser o “menos pior” à frente do microfone. Por essa época, ele ganhou uma guitarra de presente dos colegas de banda, já que precisava sempre pedir o instrumento emprestado na hora de subir ao palco. Em casa, tinha só um violão para se exercitar.
— Era um talento nato sem ferramentas. Depois que ganhou a guitarra, só deslanchou. Além de se tornar ótimo instrumentista, evoluiu também no ofício de compositor — complementa Protásio, que hoje trabalha como produtor de Humberto Gessinger.
A Canastra Suja lançou dois discos (Três Minutos Pra Água Ferver, de 2010, e Máquina Loucura, de 2012), além de dois EPs (Cozinha do Desespero, de 2011, e outro “ao vivo”, de 2009). Uma das canções mais emblemáticas do estilo da banda é Um Blues Pra Você Chorar.
O mímico e a mulher barbada
No começo dos anos 2010, Alex namorava a diretora de teatro Martha Grill, época em que ambos eram agitadores culturais em Pelotas. Hoje, ela está radicada em São Paulo, onde desenvolve atividades de barista – chegou a conquistar o segundo lugar no Campeonato Brasileiro de Baristas, em 2017.
Em 2012, Martha montou a “peça-festa” Cabaré Aurora no João Gilberto Bar, tradicional casa noturna pelotense, com personagens como a mulher elástica, o mímico e a mulher barbada, que circulavam entre as mesas, criando uma atmosfera circense no bar. O espetáculo – que ficou cerca de dois anos em cartaz – contava com uma trilha sonora composta por Alex.
— Martha e Alex eram pessoas inspiradoras da cena cultural de Pelotas naquele período — diz Luiza Castro.
Agitador cultural em Pelotas na década de 2010
Prova disso é que, além de fazer curadoria musical em outros bares, Alex também ajudava a impulsionar a carreira de novos artistas, como a de Gabi Lamas.
Natural de São Lourenço do Sul, Gabi fazia faculdade de cinema em Pelotas quando conheceu Alex. Naquele período, era uma cantora iniciante, frequentemente comparada a Malu Magalhães.
— Eu não queria ser Malu Magalhães, e sim uma rockstar! Tive certeza disso quando vi a Canastra Suja na abertura de um show da Cachorro Grande. De imediato, me identifiquei com a figura de Alex no palco.
A admiração virou amizade e, quando ela se arriscou a compor a sua primeira canção, correu para mostrar ao amigo:
— Alex me ajudou a concluir a letra e ainda me fez acreditar que a música era boa. Eu estava insegura, mas ele quase me obrigou a gravá-la.
A parceria entre os dois não parou mais. Em abril de 2024, Gabi lançou a canção Dói Demais, com produção de Alex, que também tocou contrabaixo e participou dos vocais na gravação.
Alter ego
Antes mesmo da dissolução da Canastra Suja, Alex passou a explorar um caminho solo. Foi quando inventou o personagem Massimiliano, que lhe permitia navegar por inéditas aventuras musicais.
Adotou o codinome em busca de uma liberdade poética e criativa que, até então, ainda não havia experimentado. Com o alter ego, lançou seis álbuns entre 2010 e 2021, entre os quais Briza, referência a Leonel Brizola, político com o qual se identificava.
Desenho de Thays Prado
Em 2019, Alex e Protásio Jr. combinaram formar o duo Caradura com o slogan “fazer a revolução através de uma canção de amor”.
— Queríamos tocar o ouvinte com sentimentos simples, melodias fáceis de assobiar, ainda que sonoramente contemporâneas — explica Protásio.
A ideia nasceu quando Alex vivia no litoral de Santa Catarina e Protásio tentava a sorte na Alemanha, como músico de rua em Berlim.
Mas só virou realidade quando ambos retornaram a Pelotas para um recolhimento durante o período de isolamento social da Covid-19. Aliás, as conversas para a produção do disco e as próprias composições foram criadas à distância.
Lançado com recursos do Edital Criação e Formação Diversidade das Culturas da Lei Aldir Blanc, em 2021, o projeto incluía a gravação de um álbum com nove canções, acompanhadas de videoclipes, nos quais Alex e Protásio encarnavam os personagens Rogê Cabret e Sérgio Mastrantônio para protagonizar histórias tragicômicas.
— Em plena pandemia, o Caradura nos manteve com a cabeça no lugar e com alguma grana para pagar as contas — diz Protásio.
Evento Sofá na Rua, em Pelotas, em 2017
Disco de blues
Já radicado em Porto Alegre, Alex deu início, no ano passado, à gravação do primeiro disco que pretendia assinar com o próprio nome, e não junto com uma banda ou usando a máscara de um personagem.
Batizado de Meus Blues, o trabalho é uma releitura de canções de diferentes fases de sua carreira e traz também músicas inéditas, adotando um formato que lembra as antigas big bands. Além de amigos que habitualmente tocavam com ele, tem a participação de convidados como Jorginho do Trompete e Murilo Moura (teclados).
Alex e Protásio em estúdio, gravando Meus Blues
Meus Blues estava praticamente pronto, faltando apenas concluir a mixagem e a masterização, quando Alex faleceu. A intenção dos amigos é lançar o disco junto com um livro, em versão impressa e online, reunindo textos, fotografias e catálogo da obra do artista, com apoio da PNAB (Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura), O edital está em fase de seleção.
Afora o disco póstumo, Alex deixou demos com gravações inéditas, como a que fez com Los Paisanos, trio de música instrumental gaúcha.
Marcou presença também na área do audiovisual, como roteirista do curta-metragem Milonga Lejana, de Felipe Yurgel e Chico Maximilia, de 2021. O filme conta a história de um exilado político uruguaio, que se abriga num barraco na praia do Hermenegildo, em Santa Vitória do Palmar, nos anos 1980.
Por sinal, escrever roteiros não constituía a única atividade de Alex no setor de audiovisual. Prestava serviços de dublagem e sonoplastia em produções de filmes e séries de streaming e televisão, trabalhando em regime de home office. Era, na verdade, o que lhe servia de ganha-pão.
— Viver da música sempre foi o grande desafio a ser resolvido na vida dele — diz Gabi Lamas.
Amor ao baile
A comoção causada pela morte não se limitou à cena noturna. Apesar de boêmio inveterado, Alex apreciava perambular pelas vielas da Cidade Baixa também durante o dia.
— Chamava todos pelo nome, do porteiro do edifício em que morava {na Rua Lopo Gonçalves} até o tiozinho do armazém da esquina {com a José do Patrocínio}, onde anotava as compras de pastel e Coca-Cola num caderninho — conta a namorada.
Aos sábados pela manhã, fazia questão de se deslocar até a feira do Largo da Epatur para buscar uma flor amarela, que trazia para enfeitar o apartamento. Dizia que era para agradar Mãe Oxum. Outra predileção eram os quindins dos conterrâneos da Casa de Pelotas, na Rua da República.
— Ele tinha o hábito de viver o bairro. Queria conhecer as pessoas, porque se interessava por elas. Isso, talvez, explique o carinho que elas nutriam por ele — diz Luíse.
Além da música e do cinema, Alex dedicava-se à culinária. “Gosto bastante de cozinhar. talvez seja a coisa que mais goste de fazer na vida”, postou ele no Instagram, em junho deste ano. Se bem que – afora o gosto pela boca do fogão – isso era também uma maneira de reunir os afetos.
Cozinhar para os amigos era uma das paixões
Na noite em que faleceu, por sinal, ele cozinhou para a namorada e uma amiga no apartamento da Lopo Gonçalves, Antes de pôr a mesa, abriu uma garrafa de vinho tinto para acompanhar o jogo do Grêmio contra o Corinthians, pela Copa do Brasil.
Por volta das 3 horas da madrugada, depois que a amiga já havia ido embora, Alex e Luíse conversavam sobre planos futuros - sentar à mesa de um café na Rua da República à tardinha, quem sabe curtir um filme da Cinemateca Capitólio ou uma praia em Santa Catarina no fim de semana -, quando o músico passou mal e veio a falecer.
— Tínhamos planos para a manhã seguinte e os próximos 15 dias, mas a morte não se importa com isso. Ela não está nem aí para os nossos planos — avalia Luíse.
Se é que serve de consolo, pode-se dizer que Alex viveu a vida que quis até a última noite.
O que sobrou da comida do último jantar permaneceu na panela, sem ir para a geladeira. Alguma roupa ficou na máquina de lavar. Alex deixou o guarda-chuva no bar Milonga, além de uma conta pendurada para acertar no fim do mês. Para ele, a vida parou de repente, como uma canção inacabada.
Gentil e generoso ao extremo, ao mesmo tempo sem papas na língua, o Gordo – como, carinhosamente, era chamado na intimidade – gostava de gente, movimento, alegria. Para citar um dos inúmeros bordões que tirava da cartola para divertir a roda de amigos, tinha “amor ao baile”, o que – em última instância – significava amor às coisas boas da vida.