Um brinde para Arlete

Atriz Arlete Cunha completa 35 anos de carreira encarnando Hilda Hilst

Em cena de In Cantus de Hilda Hilst no Von Teese – High Tea & Cocktail Bar (Foto de Luciana Pires Ferreira/Divulgação)

Em cena de In Cantus de Hilda Hilst no Von Teese – High Tea & Cocktail Bar (Foto de Luciana Pires Ferreira/Divulgação)

“Ninguém ficará ileso”, disse Caio Fernando Abreu, certa vez, sobre a prosa sarcástica e visceral de Hilda Hilst.

De Arlete Cunha, que completa 35 anos de carreira como atriz, pode-se dizer igualmente que nenhum espectador está a salvo ao participar do espetáculo In Cantus de Hilda Hilst, apresentado recentemente no Von Teese – High Tea & Cocktail Bar.

– É um teatro de contato, um tête-à-tête com o público, em que a personagem se relaciona diretamente com o espectador, esclarece ela.

Arlete está imensa em cena – ao se mover com agilidade por entre as mesas do café improvisado como palco, sua presença toma conta do espaço e se expande para além de portas e janelas, como se criasse uma bolha dentro da qual naquele momento todos fôssemos Hilda Hilst.

– Não precisa grande encenação, diz ela, sem afetação. E acrescenta: – A cena acontece a partir da relação que estabeleço com o público. Eu quero propor coisas, me intrometer na realidade das pessoas.

Isso não é de agora. A guria morava no pé da lomba da Vicente da Fontoura e, frequentemente, via passar Erico Verissimo, a personalidade mais famosa do bairro, de braço dado com a esposa Mafalda, em suas caminhadas diárias pelas ladeiras de Petrópolis & adjacências. É possível que os livros daquele senhor simultaneamente próximo e distante – nunca trocou uma palavra com a celebridade – tenham instigado o gosto da menina pela imaginação. Se bem que ela já brincava de teatro no pátio da casa da avó, em Novo Hamburgo, junto à laranjeira e ao galpão. Sozinha, contracenava com atores abstratos diante de um público invisível. Não pensava ser atriz, aquilo era só brincadeira. Um exercício de vida. Espontâneo, intenso, profético.

shakespeare às avessas

Com oito anos, virou bandeirante. A idade permitia que fosse uma Fadinha (como eram chamadas as menorzinhas do grupo), e era tudo o que ela queria ser. Sabe por quê? As Fadinhas brincavam de teatro, enquanto as mais velhas, ah, estas se dedicavam a tarefas mais sérias, como serviços comunitários e divulgação do movimento. Só que a Coruja (como a chefe se denominava) sugeriu que fosse diretamente para o estágio superior de dez a 13 anos.

– Eu era muito grande para a idade que tinha, explica Arlete.

Só experimentou a sensação de atuar diante de um público de verdade quando se preparava para seguir carreira no magistério no Instituto Vera Cruz (depois Colégio Mauá). Entre as atividades de classe, as alunas – só havia meninas na turma – receberam a tarefa de encenar a história de Chapeuzinho Vermelho. Como um Shakespeare às avessas, todos os papéis eram representados por moças. Adivinha qual deles lhe foi reservado?

– Lobo mau, por causa de meu tamanho. Não ia ser o de Chapeuzinho, claro.  Precisei de muita terapia depois para superar isso, não vou negar, conta ela, ao mesmo tempo séria e divertida.

Antes de se profissionalizar no teatro, deu aulas na Pré-escola Narizinho. O desafio era ensinar conceitos como de tempo e espaço para os pequenos por meio do exercício lúdico de contar histórias.

– Na minha sala, tudo podia, até subir na mesa da professora. As crianças adoravam.

Curiosas, as mães vinham espiar pela janela a atuação dos rebentos. Com o sucesso, Arlete passou a animar as festinhas de aniversário da garotada. Uma mãe sugeriu até que a professora fizesse vestibular para Artes Cênicas, mas ela tinha outros planos. Já estava assistindo às aulas de Pedagogia na UFRGS quando decidiu conferir um anúncio de jornal sobre um curso de teatro gratuito de Mirna Spritzer e Denise Barella no Centro Municipal de Cultura. Este curso marcou, em 1982, o começo da trajetória profissional de Arlete. Com os colegas, fundou o grupo Primeiro Ato, que montou a peça infantil A Incrível Viagem, de Doc Comparato.

teatro com pedra nas veias

Dois anos depois, a caminho da Narizinho, Arlete parou na Terreira da Tribo, espaço que estava prestes a ser inaugurado pelo Ói Nóis Aqui Traveiz na Rua José do Patrocínio. Um amigo indicou que o grupo precisava de gente para trabalhar com teatro infantil – naquele momento, a prioridade da atriz em início de carreira. Como era cedo da manhã, não encontrou nenhum componente da Tribo. Júlio Zanotta Vieira, dramaturgo e escritor, que estava por ali para ver a possibilidade de abrir um sebo na Terreira, sugeriu que ela voltasse à noite para assistir aos ensaios de A visita do presidenciável ou Os Morcegos Estão Comendo os Abacates Maduros, peça que nada tinha de infantil.

– Quando me dei conta, já fazia parte do elenco, substituindo a Lia Motta, que estava grávida.

A visita do presidenciável... estreou em setembro de 1984 como uma parábola do momento político do País, que ainda regurgitava os efeitos de duas décadas de ditadura militar. Não só a temática, mas principalmente a ousadia da montagem chamavam a atenção de público e crítica. Não havia palco – o elenco circulava entre os espectadores. Um telão de plástico exibia o filme em super-8 Prometeu Acorrentado, de Márcia Lara, baseado na tragédia de Ésquilo. Por ironia, na última cena, Arlete usava o uniforme de bandeirante (a vingança da Fadinha!) ao representar uma enfermeira que carregava um corpo mutilado dentro de um carrinho de supermercado. 

Sem dúvida, os trabalhos do Ói Nóis daquele período têm lugar assegurado na história do teatro experimental brasileiro, como Ostal,  de 1987, e Antígona, Ritos de Paixão e Morte, de 1990, só para citar dois exemplos de criações coletivas reconhecidas com o prêmio Açorianos de Melhor Espetáculo. Arlete. por sua vez, ganhou seu primeiro Açorianos de Melhor Atriz com Fim de Partida, de Samuel Beckett, que estreou na Terreira da Tribo em 1986.

– Atuar no Ói Nóis mudou a minha vida. Antes, eu era ensimesmada, triste, até depressiva. A intensidade das relações dentro do grupo equivaleu a um choque. Além disso, o trabalho de criação coletiva obriga que cada um construa sua própria condição de autonomia, o que representou um enorme aprendizado.

Foram 12 anos de “teatro com pedra nas veias”, mas, em 1996, depois de “adensar a matéria e preencher as ranhuras" por todo esse tempo, ela saiu do Ói Nóis convencida de que chegara a hora de juntar os pedaços e reorganizar o quebra-cabeças de si mesma. Queria fazer outras histórias, conhecer novas pessoas e, acima de tudo, voltar a trabalhar com crianças.

– Saí para descobrir outras possibilidades de me relacionar através do teatro com o mundo, dessa vez, mais íntegra e ciente de minhas necessidades e quereres.

Em Desvios em Trânsito, projeto de intervenção urbana da Cia. Rústica de Teatro (Foto/Divulgação).

Em Desvios em Trânsito, projeto de intervenção urbana da Cia. Rústica de Teatro (Foto/Divulgação).

Depois disso, nunca mais pertenceu a um grupo, trabalhando com diferentes perfis de artistas, dedicando-se a muitos "pertencimentos e encaixes". No Depósito de Teatro, por exemplo, atuou em Hilda Hilst In Claustro, apresentado no Hospital Psiquiátrico São Pedro, com direção de Roberto Oliveira, que rendeu a Arlete o segundo prêmio Açorianos de Melhor Atriz, em 2004. Outra produção do Depósito da qual fez parte, O Barão nas Árvores, de 1998, foi encenada no Parque da Redenção. Trabalhou ainda com Luciano Alabarse (Antígona, 2004, e Heldenplatz, 2005) e Daniela Carmona e Adriano Basegio (Clownssicos, 2007, e O Sonho de uma Noite de Verão, 2008), da Cia. do Giro, no TEPA (Teatro Escola de Porto Alegre), entre outros diretores e companhias. Além disso, abriu novos territórios em In-Visíveis, montagem concebida em colaboração com moradores de rua na Casa de Passagem, na Rua João Alfredo. 

à beira da morte

Fora de cena, duas experiências marcaram Arlete. Na virada de 2005 para 2006, esteve à beira da morte na UTI do Hospital de Clínicas, em consequência da demora em tratar uma pedra na vesícula. Sofreu uma embolia pulmonar e, algum tempo depois, infecção generalizada.

– Fui internada num ano e saí no outro. No final das contas, passei dois meses no hospital.

Além disso, durante sete anos ficou praticamente afastada da vida artística para cuidar da mãe (falecida em 2014), que padecia de uma enfermidade degenerativa.

– Chegou uma hora que eu não conseguia fazer mais nada. Era difícil conciliar os horários do teatro com os da cuidadora.

No momento, falta tempo para tanto trabalho. Ensaia Velhos Palhaços, de Matéi Visniec (romeno naturalizado francês), ao lado de Sandra Dani e Zé Adão Barbosa, com direção de Adriane Mottola. A estreia será no dia 5 de janeiro de 2018 no Theatro São Pedro. Como diretora, prepara Penha Florida, “monólogo musical” de Johann Alex de Souza com Leonor Cabral de Melo, outro trabalho que deverá estrear no início do próximo ano (sem data definida), na Cia. de Arte. Assina também a direção de O Urso com Música na Barriga, de Erico Verissimo (o vizinho ilustre de infância), adaptado para o teatro de bonecos, em cartaz com o grupo Atimonauta neste mês de novembro, aos sábados e domingos, igualmente na Cia. de Arte.

É pouco? Qual nada! Arlete dá continuidade ao espetáculo infantil Mário Marinheiro, que ela própria escreveu e protagoniza desde 2000, em feiras, escolas, festas de aniversário e "onde mais for possível", com histórias criadas a partir do exercício de explorar as dobraduras de uma folha de papel. Fora isso, desde 2016, voltou a participar de montagens do Ói Nóis com Medeia Vozes, em substituição à atriz Sandra Steil, falecida em 2015 – o trabalho será retomado em março de 2018 em meio às comemorações dos 40 anos da tribo de atuadores.

Nada disso impede que continue encarnando Hilda Hilst, paixão que alimenta desde que descobriu as obras da escritora paulista na estante da casa de Carlos Simioni, ator e diretor do Lume Teatro, em Campinas. O espetáculo  In Cantus de Hilda Hilst saiu do Von Teese High Tea & Cocktail Bar para ocupar a Tenda de Passárgada, na Praça da Alfândega, durante a 63ª Feira do Livro de Porto Alegre, no dia 9 de novembro. E, com Marco Fronchetti, ela está ensaiando Obs Cenas – Hilda Hilst e Sua Prosa, colagem de textos dirigida por Clarissa Malheiros, para estrear no ano que vem. 

Uma agenda intensa e do tamanho de uma das maiores artistas da cena cultural gaúcha, que há 35 anos envolve e encanta plateias de todas as idades. Um brinde para Arlete Cunha!

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Em O Barão nas Árvores, encenado no Parque da Redenção; como Bufo Fascistão (acima); e em Mário Marinheiro (Fotos/Divulgação)

Em O Barão nas Árvores, encenado no Parque da Redenção; como Bufo Fascistão (acima); e em Mário Marinheiro (Fotos/Divulgação)

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Paulo César Teixeira