Um passeio pela Cidade Baixa

Livro reconstitui elos de sociabilidade do bairro histórico de porto alegre ao analisar obras de construtores do início do século XX

Edificações da antiga Rua Concórdia (atual José do Patrocínio) expõem histórias do passado no tempo presente (Fotos/Aírton Cattani)

Edificações da antiga Rua Concórdia (atual José do Patrocínio) expõem histórias do passado no tempo presente (Fotos/Aírton Cattani)

Quem caminha pelas ruas da Cidade Baixa percebe que a paisagem sugere lembranças e revela significados, como se contasse histórias ao pé do ouvido.

É o que acontece quando a arquitetura e a história andam de mãos dadas, ainda mais num bairro histórico como a CB, o mais antigo de Porto Alegre depois do Centro Histórico.

Essa sensação aparece não só em ruas tranquilas, como a Alberto Torres e a Travessa dos Venezianos, mas também nas mais movimentadas, a exemplo de José do Patrocínio, Lima e Silva, João Alfredo e República, que também expõem o passado no momento presente.

As características arquitetônicas e urbanísticas dessa região privilegiada da cidade, analisadas sob a perspectiva histórica, constituem a questão central de Porto Alegre, Cidade Baixa: um bairro que contém seu passado (Editora Marcavisual), livro recém-lançado pelo arquiteto e historiador Renato Gama Menegotto.

A obra lança luz sobre edificações erguidas na CB, nas primeiras décadas do século passado, por arquitetos, engenheiros e “práticos com licença para construir” (profissionais sem formação acadêmica, figuras bastante comuns à época), com base em pesquisa realizada pelo autor entre 1996 e 2017.

Uma das constatações do trabalho é que, mesmo com problemas de conservação, esse conjunto de construções dos anos 1920, 1930 e 1940 possui identidade própria.

— Apesar das perdas ocorridas principalmente a partir da segunda metade do século XX, nota-se algo que histórica e articuladamente se conserva, conferindo uma condição de patrimônio cultural edificado ao bairro — afirma Menegotto, professor aposentado e um dos fundadores do curso de Arquitetura da PUC/RS.

As fachadas junto ao passeio público do conjunto arquitetônico da Cidade Baixa estimulam hábitos de convívio social, aproximando o âmbito público e o privado

As fachadas junto ao passeio público do conjunto arquitetônico da Cidade Baixa estimulam hábitos de convívio social, aproximando o âmbito público e o privado

Uma qualidade peculiar das casinhas antigas é o plano das fachadas junto ao passeio público, composição que diz muito sobre a relação historicamente estabelecida ali entre o âmbito público e o privado, já que o cenário estimula cumprimentos e acenos de saudação e até mesmo breves paradas para uma boa prosa entre moradores e transeuntes.

A descoberta faz pensar em que medida a configuração urbanística preserva (ou interrompe) os hábitos de convivência social numa determinada região da cidade, estimulando (ou não) aquilo que os historiadores chamam de sociabilidade – dito de outra maneira, estamos falando da possibilidade de encontro entre as pessoas.

Entretanto, via de regra, as intervenções feitas na paisagem ao longo do tempo alteraram o perfil do bairro, dificultando a sociabilidade. É o caso de espigões, que estabelecem distâncias de até 30 metros entre o gradil e o passeio público, sublinha o pesquisador.

— Já há algumas décadas, predomina o espírito mercantilista, que rompe abruptamente a escala do bairro, o que gera apreensão pelos danos causados às antigas estruturas arquitetônicas, as quais ficam comprometidas quando se fragmentam ou perdem seus significados históricos.

Não que a paisagem urbana seja intocável, como se fosse um museu a céu aberto. Nada disso. Afinal de contas, preservar a memória arquitetônica não significa resistir à passagem do tempo, tentando inutilmente trazer o passado de volta até o presente.

— A questão não é fazer ou não fazer, e sim como fazer — afirma Menegotto, citando o Centro Comercial Olaria como exemplo de construção que concilia patrimônio histórico e vida contemporânea.

Um passeio pela Cidade Baixa 3

“Não se quer congelar o tempo. A cidade pode evoluir sem perder a essência histórica, com sobreposições graduais, reveladoras da vida e do tempo. O problema são as intervenções abruptas, que quebram a escala do bairro”

Renato Menegotto, arquiteto e historiador

Uma região alagadiça, sujeita a frequentes inundações, até meados do século XX, a Cidade Baixa foi habitada a princípio por escravos libertos e imigrantes italianos – por muito tempo, as classes abastadas não manifestaram desejo de fincar residência numa região tão pouco valorizada.

Paradoxalmente, essa imagem negativa talvez tenha servido de escudo protetor para que a CB preservasse, ao menos em parte, suas configurações originais. Com isso, o bairro não sofreu uma descaracterização acelerada, como ocorreu em outras áreas da cidade, consideradas mais nobres.

Mas, nas últimas décadas, ao que tudo indica, a especulação imobiliária, enfim, descobriu as vantagens oferecidas por uma área próxima ao Centro Histórico, com boa infraestrutura de serviços e intensa vida cultural, o que pode colocar em risco sua integridade arquitetônica e suas alternativas efetivas de sociabilidade.

— A mistura de área residencial com comércio, cultura e lazer é irresistível. É um bairro em que as pessoas se encontram, diz o pesquisador.

Rua da República, anos 1920: construções de personalidade própria, mas integradas ao projeto do bairro (Foto/Museu Joaquim Felizardo)

Rua da República, anos 1920: construções de personalidade própria, mas integradas ao projeto do bairro (Foto/Museu Joaquim Felizardo)

Além da análise do conjunto arquitetônico do bairro, o livro de Menegotto apresenta estudos de caso, como o da construção situada na antiga Rua Concórdia (atual José do Patrocínio), nº 648, obra atribuída ao italiano Luiz Valiera. A inscrição na platibanda indica a data de inauguração: 1922. Igualmente, o agrupamento de quatro sobrados geminados da Rua Alberto Torres, projetado em 1935 por Leonidas Tellini, é avaliado separadamente, com riqueza de detalhes.

Em paralelo, oferece uma rica experiência visual, através de fotografias, mapas, desenhos de fachadas e plantas baixas, que asseguram aos leitores e leitoras um exercício de visita à arquitetura de casas singelas do passado do bairro.

O passeio vale a pena.

Afinal, como bem diz a arquiteta Maria Beatriz Kother, ex-diretora do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado, no prefácio da obra de Menegotto, “a construção das cidades é resultado de múltiplas vivências e experiências humanas”.

Porto Alegre, Cidade Baixa: um bairro que contém seu passado está à venda nas livrarias Bamboletras e Letras & Cia., e também pelo e-mail livro.cidadebaixa@gmail.com.