Nega Lu na passarela

Personagem irreverente, que marcou a cena cultural e boêmia de Porto Alegre, vai ganhar projeção nacional como tema do desfile da Realeza no carnaval de 2023, com samba de autoria de Marcelo Adnet

Nega Lu: figura popular e ícone da diversidade sexual (Arquivo Pessoal de Hilda Maria com reprodução de Tânia Meinerz)

Ela já foi muita coisa nessa vida.

Cantora, bailarina, batuqueira, boêmia, garçonete e cozinheira. Mais que isso, foi um símbolo de coragem e liberdade para enfrentar os preconceitos vigentes no tempo em que viveu na Terra, entre 1955 e 2005.

Agora, a Nega Lu vai virar enredo de escola de samba.

Na Parada Livre, anos 2000 (Foto/Tânia Meinerz)

Mas, afinal, de quem estamos falando? De Luiz Airton Farias Bastos, nome de batismo do homossexual negro que, entre os anos 1970 e 1990, foi protagonista da cena cultural e boêmia de Porto Alegre.

Uma personagem irreverente e inovadora, capaz de antecipar em algumas décadas boa parte dos avanços e das conquistas que, ainda que de modo incompleto, vivemos hoje.

Com toda a justiça, a Nega Lu será o tema do desfile de estreia da Sociedade Beneficente Cultural Realeza na Série Ouro, grupo de elite do carnaval de Porto Alegre, em 2023.

O samba enredo já está sendo elaborado por Marcelo Adnet – humorista, ator, compositor e apresentador de programas da Globo – e um grupo de compositores, a partir da sinopse de Pedro Linhares Jr. e do carnavalesco Luis Augusto Lacerda, o Gugu.

— A Nega Lu é um diamante multifacetado, única e plural, uma personalidade complexa que foi pavilhão de si mesma. É parte do folclore da cidade, mas revela a identidade de Porto Alegre sob uma perspectiva diferente da tradicional — diz Adnet, em contato com o Rua da Margem.

Para ele, o desfile da Realeza vai projetar a figura da Nega Lu em nível nacional, além de apresentá-la aos gaúchos que ainda não a conhecem.

Encruzilhada do Samba

Por certo, não haveria melhor escola carnavalesca para acolher personagem tão carismática.

A Realeza foi fundada em 11 de abril de 1976 por famílias que moravam no mesmo quarteirão, ao pé da Vila Maria da Conceição, no bairro Partenon (zona leste de Porto Alegre).

À época, a maior parte desfilava na Imperadores do Samba e decidiu criar uma escola de samba perto de casa. Na reunião de fundação, na casa de dona Catarina, havia perto de 70 pessoas.

Adnet com a galera da Realeza no local de ensaios a céu aberto (Foto/Divulgação)

Sem dinheiro para construir uma quadra, a Realeza ensaia até hoje a céu aberto, defronte à residência de dona Catarina, na esquina da Rua Carlos de Laet com a Carneiro Ribeiro. O cruzamento, aliás, ganhou o nome de Encruzilhada do Samba.

Em dias de ensaio, geralmente aos domingos, a Carneiro Ribeiro é fechada para o tráfego de veículos pela prefeitura para que possa se transformar em uma via de lazer.

Então, a galera monta um palco de madeira ou nem isso – simplesmente instala as caixas de som e improvisa o palco na calçada em frente ao muro grafitado com o símbolo da Realeza.

Por volta das seis horas da tarde, as famílias começam a aparecer com as cadeirinhas de praia a tiracolo para assegurar lugar privilegiado na plateia. Os ensaios têm início às oito da noite (a previsão é que sejam retomados a partir de outubro deste ano, já pensando no carnaval de 2023).

— É um ambiente muito familiar — diz Maurício Corrêa Santos, vice-presidente da agremiação.

Não é que o pessoal deixe de curtir a festa. Mas a Realeza – como toda a escola que se preze – sonha em contar com uma quadra para ensaiar.

Para isso, já conseguiu autorização para dispor de um terreno da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, junto à Praça Demétrio Ribeiro. Falta apenas a Câmara de Vereadores regulamentar a cedência, o que se espera que aconteça até o final de 2022.

elogio da ancestralidade

Desde os 1970, a Realeza exibe enredos nacionalistas para destacar a cultura afro-brasileira.

— É uma escola identificada com a trajetória de personagens esquecidos pela história oficial, que é contada pelos brancos — sublinha Pedro Linhares Jr.

Além de criar a sinopse do desfile da Nega Lu, ele também foi responsável pelo enredo que fez da escola do Partenon campeã da Série Prata em 2022 e, com isso, garantiu o acesso da Realeza à Séria Ouro no próximo ano.

Com a amiga Drika (Foto/Arquivo Pessoal de Hilda Maria)

O tema era inspirado no Massacre dos Porongos, uma emboscada feita pelas tropas imperiais na madrugada de 14 de novembro de 1844, que vitimou mais de uma centena de soldados negros durante a Guerra dos Farrapos.

No passado, a Realeza rivalizava com a Garotos da Orgia, uma vez que ambas enalteciam a ancestralidade ao desfilar na passarela.

A Garotos da Orgia tinha sede na Avenida Ipiranga, local que hoje abriga o bloco Afro-Sul Odomode. Não é por acaso. Além da sede, o bloco herdou a tradição da escola de samba, que desfilou pela última vez no carnaval de 1998.

Nos últimos tempos, a Realeza passou a exaltar ainda mais a matriz africana. É um compromisso da atual direção, comandada pelos irmãos gêmeos Mauro (presidente) e Maurício, pertencentes a uma das famílias fundadoras da entidade.

Eles participam dos desfiles desde os nove anos de idade. Já vivenciaram todos os setores da escola – da ala mirim à direção de bateria, do barracão à comissão de carnaval.

— É dever de toda a escola de samba, ainda mais se ela for enraizada em bairro periférico como a nossa, trazer informação e propor debates para a comunidade — assinala Maurício.

A NEGA LU E O CARNAVAL

Como o caminho da Nega Lu cruzou com o da Realeza?

Alguns anos atrás, o carnavalesco Augusto Lacerda foi apresentado à personagem ícone da contracultura de Porto Alegre durante um churrasco na casa de Hilda Maria, irmã da Nega Lu e mãe de Aírton, de quem o carnavalesco é bastante amigo.

Em meio à confraternização, os anfitriões comentaram que estava em andamento a produção de uma biografia sobre a celebridade do bas-fond da cidade.

Estavam falando do livro Nega Lu – Uma Dama de Barba Malfeita (Libretos Editora), do jornalista Paulo César Teixeira (editor do Rua da Margem), lançado em outubro de 2015. Por sinal, a obra ganhou o prêmio AGES (Associação Gaúcha de Escritores) de Livro do Ano – Categoria Não Ficção, em 2016.

Nega Lu na Banda da Saldanha (Foto/Acervo do Grupo Nuances)

Antes do churrasco na casa de Hilda Maria, a recordação que Gugu tinha da Nega Lu remetia à infância. E, para falar a verdade, não era das mais reconfortantes.

— Lembrava dela como a porta-estandarte enlouquecida da Banda da Saldanha.

Aos olhos da criança, a figura desbocada, que rebolava e ameaçava fazer strip-tease ao desfilar pelas ruas do Menino Deus, provocava arrepios. Como se não bastasse, o pessoal da banda dizia para a criançada não chegar perto, porque ela dava chutes em quem aparecesse na frente.

— Era mentira. Diziam isso para a gente não atrapalhar o desfile — conta Gugu.

A relação da Nega Lu com o carnaval não se resumia à Banda da Saldanha, da qual era considerada Rainha e Madrinha, além de porta-estandarte.

O apego à folia era legado dos antepassados – o avô da Nega Lu, Cezar, tinha sido presidente do bloco Sociedade Garotos da Boemia e o pai, Airton, sambava com a flâmula da tribo Os Bororós, além de ter sido um emérito percussionista.

Além de desfilar na Banda da Saldanha, Nega Lu também participou do carnaval de Entre Rios, na Argentina, e chegou a cogitar fundar seu próprio bloco, a Banda do Almirante (referência à rua onde morou a vida inteira, Almirante Gonçalves, no Menino Deus, em Porto Alegre), projeto que nunca saiu do papel.

figura esvoaçante

De volta ao churrasco na casa da irmã da Nega Lu: a conversa foi ficando cada vez mais animada, a ponto de Hilda Maria se levantar da mesa para buscar uma caixa cheia de fotografias antigas, que estava guardada na gaveta.

As imagens traziam lembranças de episódios engraçados ou emblemáticos da vida da Nega Lu.

Com as fotografias nas mãos, Gugu pensou com seus próprios botões – essa tal de Nega Lu daria um belo enredo de carnaval.

Aí passaram-se os anos e a ideia ficou no esquecimento. Até que, instantes antes do desfile deste ano, o presidente da Realeza se aproximou do carnavalesco e perguntou à queima-roupa:

— Então, Gugu, já tens o enredo do próximo ano? Temos que começar a trabalhar nele o quanto antes.

No Largo Zumbi dos Palmares, área central de Porto Alegre (Arquivo de Hilda Maria)

Com o friozinho na barriga que sente quem está prestes a dar início ao desfile, Gugu não conseguiu responder. Não era o momento. Mas a verdade é que ele já tinha pensado no assunto. Acalentava a ideia de deixar de lado os tais personagens históricos, sempre tão característicos dos desfiles de carnaval.

— Queria trazer um assunto bem atual, com o qual as pessoas se identificassem, como homofobia ou outra temática ligada à questão de gênero — conta ele.

Ao final do desfile, já na dispersão, exausto e ainda zonzo de tanto correr e gritar, na tentativa de harmonizar o andamento da escola na avenida, Gugu escutou, outra vez, a pergunta:

— E o enredo do próximo ano?

Neste momento, com a vista enevoada pela euforia ou, quem sabe, pelo cansaço, Gugu deparou com uma entidade à sua frente. Era uma figura colorida e esvoaçante, pulando, dançando, transloucada.

— Era a Nega Lu! Ela se materializou bem diante de mim — relata Gugu.

Ninguém duvida. Até porque – pelo sim, pelo não – a decisão a respeito do enredo da Sociedade Beneficente Cultural Realeza de 2023 foi tomada ali. Só então, com o peito aliviado, Gugu se dirigiu ao camarim para beber uma cerveja. Era tudo o que merecia.

Pulo da cadeira

À essa altura, você há de perguntar – de que jeito o Marcelo Adnet entrou nessa história?

Carnavalesco dos pés ao pescoço (já compôs sambas enredos para escolas cariocas e paulistas), ele assistiu em sua casa, no Rio de Janeiro, ao desfile de carnaval de Porto Alegre pelo YouTube, em 6 de maio deste ano (não esqueçamos que, por conta da pandemia da covid-19, o evento foi realizado fora de época).

Naquela noite, Adnet encontrava-se gripado e um pouco abatido, o que não o impediu de dar um pulo na cadeira ao escutar o título do enredo da Realeza – Eles Combinaram de Nos Matar, Nós Combinamos de Não Morrer.

— Estava ali largado, quietinho, quando ouvi a frase que me impactou demais — conta ele.

Post de Adnet no Twitter

Entusiasmado, não se conteve e filmou a entrevista que Gugu concedeu à TVE, momentos antes do desfile. Em seguida, postou o vídeo em sua conta no Twitter.  

Dias depois, ao tomar conhecimento de que a Realeza havia sido campeã, voltou a mencioná-la no Twitter, declarando-se torcedor apaixonado da escola para o resto da vida. Encantados, os dirigentes da agremiação estabeleceram contato com Adnet para agradecer o apoio.

De surpresa, passado algum tempo, ele telefonou para Gugu para dizer que estava em Porto Alegre – é casado com a atriz gaúcha Patrícia Cardoso e tinha vindo apresentar a filha do casal, Alice (nascida em 2020), aos avós maternos. Acrescentou que gostaria muito de beber um chope na quadra da Realeza.

— Quadra? Como assim? A sede é no meio da rua — matutou Gugu, sem saber o que fazer.

Nisso, alguns integrantes da escola desconfiaram que poderia se tratar de um impostor se fazendo passar pelo comediante. Para tirar a dúvida, Gugu pediu que Adnet fizesse uma chamada de vídeo pelo WhatsApp.

Em segundos, Adnet apareceu na tela do celular.

Depois, ao vivo e a cores, ao beber uma cerveja com a turma da Realeza, no bar Quebra-Galho, na Rua Carlos de Laet, perto da Encruzilhada do Samba, Adnet foi oficialmente convidado a assumir o posto de embaixador da escola pelo Brasil afora.

— Aceitei com muito prazer. Agora é a minha escola de coração em Porto Alegre.

Identidade visual do enredo criada por Soul Chamb

Aquela foi uma noite especial ao pé do morro da Vila Maria da Conceição. Era 17 de maio, data em que Porto Alegre estava sob a ameaça de um ciclone, que, afinal, não veio – ao invés disso, caía uma chuva fria e fina sobre a cidade.

— Foi tudo mágico e meio por acaso. Fui recebido com tanto carinho, de forma intensa e honesta, como o samba é. É impressionante como o samba faz a gente se sentir à vontade em qualquer lugar – relata Adnet.

No ato, Adnet também recebeu a missão de compor o samba em homenagem a Nega Lu para o próximo carnaval. O enredo A Divina Realeza do Basfond é Uma Dama de Barba Malfeita foi oficialmente anunciado pela Realeza no dia 3 de julho.

A identidade visual do tema, apresentada nas redes sociais da escola, é uma criação do artista plástico Soul Chamb, que também assina o mural com a imagem da Nega Lu exposto, desde o ano passado, na fachada da Loja Profana, na Rua Lima e Silva, na Cidade Baixa.

Antes de retornar ao Rio de Janeiro, Adnet passou numa livraria e comprou a biografia da Nega Lu. Outra fonte de inspiração é o documentário Nêga Lû, produzido pelo Coletivo Catarse e o Nuances – Grupo Pela Livre Expressão Sexual, em 2015.

A tarefa de composição musical é dividida com Gustavo Albuquerque, André Carvalho, Fofão e Baby do Cavaco, que integram a equipe de compositores liderada por Adnet. Em 2020, essa turma criou o samba do desfile da São Clemente na Marquês do Sapucaí

— Estamos felizes pela oportunidade de saudar essa pessoa única e maravilhosa e vamos trabalhar muito para que a Realeza desfile com um samba à altura da escola e da Nega Lu — conclui Adnet.

Paulo César Teixeira