Uma milonga na taberna

Espaço boêmio e cultural da Travessa dos Venezianos se qualifica com a abertura do Milonga, o novo bar do reduto histórico da Cidade Baixa

Travessa dos Venezianos lotada na noite de inauguração do bar Milonga (Fotos Aline More/Divulgação)

Para os desavisados, a profusão de sons, por vezes caótica, que paira à noite sobre as pedras seculares da calçada da Travessa dos Venezianos até pode surpreender. Afinal, até alguns anos atrás, esse reduto histórico da Cidade Baixa era uma ilha de sossego em meio ao multifacetado bairro boêmio de Porto Alegre.

O caldo sonoro, por vezes apimentado, vem da música ao vivo que ecoa desde as casinhas de porta e janela, somada ao burburinho do público que se acomoda do lado de fora, de copo na mão. Agora, surge um novo bar disposto a instaurar – ou, melhor dizendo, reinstalar – um ambiente mais intimista na histórica travessa, construída no início do século passado, ainda que sem atravessar o ritmo. 

É o Milonga, inaugurado no último dia 15 de julho, sob a inspiração das antigas tabernas.

— É muito bom estar aglomerado no espaço aberto da calçada, mas é preciso que também haja lugar para trocas mais pessoais, com uma interação que permita encontros inesperados, o que só um bar com cadeiras próximas umas das outras pode proporcionar – diz Pepe Martini, que abriu o Milonga em sociedade com o pai, Ronivon.

Herdeiros do guernica

Paradoxalmente, o mais novo bar da Travessa dos Venezianos é, de certa maneira, também o mais antigo.

Explica-se: os proprietários do Milonga são também os fundadores do Guernica, primeiro comércio de perfil boêmio a ocupar a ruazinha nos tempos modernos.

É verdade que, desde o ano 2000, já existia o Venê, referência central da cena LGBTQIAPN+ em Porto Alegre, mas com uso prioritário do espaço interno e fachada externa voltada para a Rua Joaquim Nabuco.

Boemia dentro e fora do bar (Foto/Ro Lopes)

O Guernica abriu as portas no primeiro dia do outono (21 de março) de 2019. Naquele momento, não havia garantia de que o público iria aderir à Travessa como opção de lazer noturno.

— Na época, a gente achou importante criar um espaço de cultura e boemia que contribuísse para mudar o perfil e qualificar o ambiente de uma rua tão linda como essa, reconhecida como patrimônio histórico (a Travessa é tombada desde 1980), que ficava praticamente vazia durante a noite – explica Pepe.

A adesão foi rápida – em dois meses, o Guernica havia conquistado lugar cativo na cena alternativa da cidade, como registrou o Rua da Margem.

Nele, estrearam artistas que, hoje, ocupam lugar de destaque na agenda cultural da cidade. Entre eles, William Maidana, o Guri do Cavaquinho, e a Baião de Cordel, uma das bandas de forró pé-de-serra no sul do país. O boteco serviu de locação para o clipe da canção Simbora yá yá, o último gravado por Luiz Vagner, um dos principais nomes do samba rock gaúcho, que morreu em 2021.

Por lá, aconteceram ainda lançamentos de livros, como Rua da Margem – Histórias de Porto Alegre, em novembro de 2019.

O velho Guernica foi também cenário do curta-metragem Compasso, produção dos alunos de comunicação da UFRGS dirigida por Vanessa Dias, que alcançou a marca de 3,3 milhões de visualizações no YouTube.

Guernica inaugurou a boemia contemporânea na Travessa dos Venezianos (Foto/Divulgação)

Sem falar que era local de encontro de políticos de distintas vertentes da esquerda, como Olívio Dutra, Júlio Flores e Onir Araújo, tendo sido ponto de lançamento da campanha de Laura Sito, eleita vereadora de Porto Alegre, em 2020, pelo PT.

— Era um espaço de convivência fora das disputas políticas, dentro de um ambiente lúdico, o que talvez fizesse com que essas pessoas se entendessem e se gostassem mais – sugere Pepe.

Em setembro de 2021, os fundadores do Guernica repassaram o bar para Bruna Martello e Leonardo Serrat, que não deixaram a peteca cair – continua sendo um dos endereços mais concorridos da Travessa, com agenda lotada de shows, de quarta a domingo.

O sucesso do Guernica atraiu outros bares e restaurantes, como o Polvocultural e a Butcher Pizza Bar, criando a atmosfera efervescente e criativa que hoje impera na ruazinha de apenas 17 casas, onde a essa altura há mais comércio noturno do que moradores.

O Milonga chega um pouco na contramão da corrente que seus fundadores ajudaram a implantar na Travessa, há quatro anos.

A agenda do novo bar não prevê shows de música ao vivo todas as noites, apenas às quintas-feiras. Além disso, a programação se concentra em ritmos latino-americanos, buscando uma “identidade dentro da diversidade” do continente, como salienta Pepe.

Não que a música brasileira esteja proibida, mas que ninguém espere a repetição das rodas de samba e pagode que, atualmente, dominam a pauta musical da Cidade Baixa.

O detalhe é que, quando houver show no Milonga, não haverá apresentações musicais no Guernica, conforme acordo feito entre os proprietários dos bares vizinhos, já que as casinhas são grudadas e um evento interferiria no outro.

Abaixo, confira detalhes da decoração interna do Milonga (Fotos/Rua da Margem).

Arte da adivinhação

A escolha do nome se deu através de uma enquete nas redes sociais, com a participação de cerca de 400 pessoas, entre amigos e antigos clientes do Guernica. A enquete sugeria três opções – Milonga, Olívio e Tambaré.

Além de bastante sonoro, o nome escolhido tem origem no quimbundo, dialeto que pertence ao tronco linguístico do bantu, ancestralmente falado na região de Angola (de onde veio grande parte dos africanos escravizados no Brasil).

Etimologicamente, o termo remete a um coletivo de palavras, ou seja, a uma boa prosa, o que – cá entre nós – tem tudo a ver com o perfil do bar. É também um gênero musical, que, originalmente, acompanhava uma história a ser contada.

— Milonga tem o sentido de prestar atenção, de ouvir atentamente alguma coisa, que é um pouco o que a gente está propondo na Travessa neste momento – diz Ronivon.

Pepe e Ronivon, criadores do Guernica e do Milonga

Uma atração especial do Milonga é a leitura de cartas de tarô pela uruguaia Graciela Vecino, com larga experiência na arte de fazer adivinhações, que estará a postos em um cantinho do bar, em determinadas noites.

No cardápio, a ideia é trabalhar com uma gastronomia com ingredientes não corriqueiros, mas de preços acessíveis – um dos destaques é o Choripán, sanduíche típico do Cone Sul da América, que sai por R$ 13.

Aos sábados, o Milonga oferece pratos temáticos. Cabe lembrar que Pepe esteve à frente do projeto itinerante de cozinha artesanal Mucho Gosto, que passou por bares como Comitê Latino-Americano, Café Fon Fon e Tutti Giorni, no final dos anos 2010.

— De resto, a intenção é promover saraus, lançamentos de livros, eventos de economia solidária, tudo que possa instigar as pessoas — afirma Ronivon.

A casinha no número 38 da Travessa, onde se instalou o Milonga, tem 50 metros quadrados de área interna, espaço suficiente para a distribuição de 15 mesinhas. No mezanino, foi acomodado um sofá confortável para que o cliente não tenha pressa de ir embora. Há ainda uma área de convivência no terraço, que também serve de fumódromo,

— É também uma forma de desfrutar de um espaço ao ar livre na Travessa, sem estar na calçada — diz Pepe.

O Milonga começa a atender a partir das 7 da noite, estendendo o horário de funcionamento até 1 e 30 na quinta-feira e até 2 e meia na sexta e no sábado (não opera nos demais dias da semana).

— Evidentemente, vamos cumprir as regras municipais, mas sempre buscando usar esse tempo da forma mais generosa que nos for permitida — conclui Pepe.